Dois “plátanos” e sete tomates
05-09-2018 - 06:16

Mais de 32 milhões de seres humanos que (sobre)vivem no que é hoje o Estado e a sociedade, falhados e caóticos, de uma Venezuela reduzida à ditadura de um homem.

Vi a reportagem na televisão há alguns dias. Numa qualquer rua de Caracas, à porta de um supermercado ou mercearia, onde muitos já não podem comprar nada ou nada há para vender, uma mulher mostrava o que conseguira adquirir: nada mais do que dois “plátanos” (bananas) e sete tomates. E acrescentava que aquela esquálida provisão era tudo o que o venezuelano médio pode comprar durante um mês, com o seu salário de menos de dois euros! A reportagem acompanhava-a depois – rosto encovado, provavelmente com fome, sem dúvida desesperada – a casa, filmando-a a olhar uma favela num morro. Não sabemos se a parca fruta e legumes mostrados a iam alimentar somente a ela ou se os dividiria com outros – a família, numerosa ou não, algum amigo ou vizinho.

Aqueles segundos televisivos eram a ponta de um icebergue, e aquela mulher sem nome apenas um dos mais de 32 milhões de seres humanos que (sobre)vivem no que é hoje o Estado e a sociedade, falhados e caóticos, de uma Venezuela reduzida à ditadura de um homem.

A ruína do “chavismo” e a agonia do “madurismo” estão à vista de todos. De caudilhos heroicos muito estimados e louvados pelas esquerdas europeias (portuguesa incluída), Hugo Chávez e, hoje, Nicolas Maduro tornaram-se um enorme embaraço para os antigos amigos e uma gigantesca evidência do que é o “socialismo real”. Uma visão cínica das coisas não diria que eles condenaram a Venezuela ao mais abjeto fracasso; argumentaria antes que eles tiveram êxito no grande desígnio que sempre apaixonou o radicalismo de esquerda, a saber, criar, por achatamento horizontal na base, a absoluta “igualdade”. De facto, não há hoje muitos países tão igualitários como a Venezuela; o problema é que a igualdade venezuelana é a comunhão dos descamisados, a igualdade na miséria, na fome, na desesperança e na fuga. Quase dois milhões e meio de pessoas abandonaram o país desde 2014, provocando um fluxo migratório de refugiados, já comparável ao que cruza o Mediterrâneo a caminho da Europa, que invade os países vizinhos (a Colômbia, o Equador, o Peru e até o Brasil, de Michel Temer), fazendo-os quase parecerem paraísos a comparar com a vida em Caracas ou noutras cidades sujeitas à outrora gloriosa “revolução bolivariana”.

O drama da Venezuela não pode agradar a ninguém: não é humano desejar, na arena política, “quanto pior melhor”, para provar que Maduro é um louco e as suas engenharias sociais e financeiras um abismo. Maduro irá cair, porque a “sua” Venezuela já não existe como país viável. Uma economia onde é preciso um largo saco de notas, no valor de 14,6 milhões de bolívares (!), para comprar um frango no valor de 1,9 euros é um absurdo. Faltam alimentos, medicamentos, cuidados hospitalares, transportes – tudo. E em cima disto, Maduro veio agora propor que os venezuelanos “aforrem”, comprando pequenos lingotes de ouro a preço acessível!

Constatar o que se vê e ouve sobre a Venezuela não tem que ver com ser de direita ou de esquerda. O problema é simplesmente – melhor dizendo, dramática e urgentemente – humanitário. Indigna qualquer alma como é que aquele país da América latina, outrora próspero, foi tomado por um punhado de cleptocratas que estriba a sua existência – na verdade, o seu delírio – na ruína dos seus concidadãos, com a ironia trágica de a Venezuela ser um território rico em petróleo, ouro, diamantes ou gás natural. Os recursos naturais venezuelanos são superiores aos de Portugal ou aos de outros países europeus. Mas isso de nada vale, nem nunca valeu, noutros tempos ou lugares, perante um lunático que estrebucha numa péssima política.