"Software" que acelera julgamentos é rejeitado pelo Ministério da Justiça
29-04-2019 - 06:30
 • Liliana Monteiro

Um juiz e dois polícias desenvolveram uma ferramenta que agiliza a investigação e o julgamento, mas ministério de Francisca Van Dunem decidiu ignorar o sistema que podia obter de forma gratuita. Conselho Superior da Magistratura e a Procuradoria-Geral da República reconhecem utilidade, poupança e rapidez e celebraram protocolos para instalação da ferramenta.

O Sistema Integrado de Informação Processual (SIIP) foi desenvolvido pelo juiz António Costa Gomes e pelos polícias Ernesto de Sousa e António Soares da Costa com o intuito de organizar melhor os processos e permitir a sua consulta rápida.

A Procuradoria-Geral da República e o Conselho Superior da Magistratura já deram "luz verde" para a sua utilização por juízes e procuradores, "sendo reconhecidamente considerada como potenciadora da transparência, eficácia e bom desempenho na atividade processual", lê-se no protocolo celebrado para a instalação da ferramenta, que já está a ser usada em processos como a Operação Marquês e foi utilizada em processos como o Face Oculta, Vistos Gold, Jogo Duplo e Operaçao Fizz.

Já o Ministério da Justiça mostrou inicialmente interesse no projeto, mas, rapidamente, afastou-se dele. Vários anos depois de ter sido criado, e melhorado, não foi aproveitado pelo Ministério, que mantém em curso ainda um grupo de trabalho para melhorar a tramitação dos processos judiciais.

Confrontado pela Renascença com a proliferação do uso do SIIP, mesmo sem reconhecimento oficial, o ministério da Justiça afirma "não ter nada a dizer". Porque não aproveita um sistema reconhecido por quem o usa como útil e rápido? O Ministério da Justiça também não explica

O juiz António Costa Gomes, um dos três mentores do Sistema Integrado de Informação Processual, explica como funciona o software.

O que é o SIIP?

É um sistema integrado de informação processual, uma ferramenta que auxilia todos os sujeitos processuais, polícia, Ministério Público, juízes e advogados na tarefa de organização, análise e apresentação da prova em processo penal.

Todos os sistemas criados até ao momento são sistemas pensados sobretudo na tramitação. O Citius permite aos advogados enviar peças processuais, aos funcionários abrirem conclusões e cumprirem despachos, aos juízes e Ministério Público proferirem despachos, mas o sistema não auxilia na tarefa fundamental que é organizar a prova, pesquisá-la de forma eficaz, apresentá-la em julgamento. Foi por detetarmos esta lacuna que iniciámos este projeto.

Isto porque num julgamento têm muitas vezes caixotes e muitos volumes, mal organizados e de difícil consulta?

O primeiro aspeto fundamental é a organização física do processo. Processos com grande volume de informação são sempre de gestão difícil. Se nós temos, por exemplo, mais de 100 arguidos, milhares de anexos e escutas, como apresentamos isto de forma rápida e simples? Como pesquisamos num julgamento que se quer célere e rápido? Foi por isso que criámos o SIIP.

Este sistema permite às polícias trabalharem logo no sistema, fazerem relatórios que são normalmente trabalhosos, em poucos minutos. Lembro-me que há pouco tempo criámos um relatório com duas mil folhas, trabalho que em condições normais levaria vários meses e o sistema gera em poucos minutos.

Nós partimos de um conceito simples. Qualquer investigação está sempre centrada nos factos, sujeito e as provas. Se tivermos cuidado desde uma fase embrionária da investigação ir criando factos no sistema e associar sujeitos e provas, ficamos com tudo organizado.

Quando nós temos uma investigação de tráfico, por exemplo, uma única venda de droga envolve o traficante e um consumidor (isto é o exemplo mais simples). Em termos de meio de prova pode envolver uma vigilância, escutas, auto de pesagem e apreensão de droga, exame toxicológico, depoimento do consumidor e para uma única venda temos sete ou oito items de prova. Agora imagine-se um processo que tem 1.300 vendas. E um julgamento de droga é relativamente simples, mas imagine o que é preparar um julgamento desta dimensão. Saber para cada facto quem participou nele e que provas existem, quem são as testemunhas, etc....

Por exemplo, com este sistema, na audição de uma testemunha, quando ela entra na sala o coletivo de juízes e Ministério Público conseguem logo saber que aquela pessoa está relacionada com ‘aqueles factos’. Isso facilita a inquirição. Conseguimos logo confrontá-la com escutas, fotografias, etc… O sistema é uma espécie de motor de busca pensado para a atividade da investigação e julgamento.

O SIIP agiliza, poupa tempo e dinheiro?

Temos ainda poucos indicadores, mas dou-lhe um exemplo, um julgamento que tinha duração prevista de quatro meses e meio com recurso ao SIIP fez-se em menos de dois meses. Era um processo com mais de 20 arguidos e 24 elementos forças policiais entre PSP e Guardas Prisionais. Calculamos que nesse julgamento se tenham poupado 150 mil euros só em salários.

Mais importante que a poupança é a qualidade que se consegue na produção de prova. Se temos uma investigação complexa o que todos queremos é que o julgamento, a existir, descubra efetivamente a verdade, mesmo que seja para absolver. Quando temos um volume de informação mais elevado é por vezes difícil chegar aos elementos fundamentais para cada facto e isso deixa-nos um certo 'amargo de boca’ porque sabemos que é difícil chegar à verdade e sabemos que o trabalho não é feito como gostaríamos que fosse.

Com um sistema destes é mais difícil falhar alguma coisa. Ficamos todos satisfeitos e conseguem-se decisões mais corretas e justas.

O que é preciso para este sistema funcionar?

Temos o sistema a funcionar em ambiente local. Sentimos que era esse o desejo de polícias e magistrados. Principalmente quando ainda há sigilo da investigação.

Tudo funciona num disco externo, onde é instalado o sistema, e na fase de julgamento precisamos de uma tela e projector para mostrar a prova.

Funcionando num disco externo é mais seguro. O SIIP faz uma organização digital do processo. Já hoje os processos estão em dvd ou guardados em disco externo. O conteúdo do processo já existe em suporte. Nessa perspetiva, não trazemos nada de novo. Procurámos dar mais segurança.

O acesso ao disco é feito por quem tenha credenciais válidas e, para isso. é preciso fazer um registo e login, processo a processo. O registo tem de ser validado pelo titular do processo e os níveis de permissão são atribuídos de acordo com a necessidade. Se, por exemplo, um agente só vai fazer transcrições só pode ter acesso a isso e não aos factos e intervenientes, apagar e mudar informações.

Temos um sistema de anti-colonagem do disco. Estamos convencidos que temos um bom sistema de segurança. Na medida do possível, temos mecanismos essenciais.

Já há muitos utilizadores, até de processos de grande dimensão e mediáticos?

Até ao momento já temos 100 processos com grande dimensão em que os magistrados utilizaram ou estão a utilizar o SIIP. O processo Face Oculta foi o primeiro a usá-lo, embora numa versão na altura básica.

Agora podemos dizer que temos um sistema profissional, foi feita avaliação das necessidades, recebemos informação dos utilizadores e melhorámos. Foi testado e sabemos que este é o caminho certo. Temos processos com milhares de documentos e funciona tudo bem, a consulta é rápida. O 'feedback' de polícias, procuradores, juízes e advogados tem sido boa.

Já fizeram protocolos com entidades da justiça para uso deste sistema que o MJ não reconhece, uma vez que não o tem como o sistema implementado em todos os tribunais?

Começámos a usar o sistema pontualmente sempre que nos era pedido. Agora temos protocolo com a Procuradoria-Geral da Republica, feito na altura da Procuradora-Geral Joana Marques Vidal e outro com o Conselho Superior da Magistratura (CSM), para dar suporte formal para uso do sistema. O CSM até disponibilizou uma funcionária para colaborar neste projeto.

Estes protocolos correspondem a um desejo nosso para disponibilizar um sistema que auxiliasse os tribunais. Foi o culminar de muito trabalho.

O Ministério da Justiça não é obrigado a usar este programa, saberá o que quer fazer e tem os seus projetos. Vamos ver como tudo evolui.

Não poderá estar a ser criada uma desigualdade. Os cidadãos que tenham coletivos de juízes que usem este Sistema verem os processos a serem resolvidos mais rápido do que os que têm casos em tribunais onde não é usado?

Francamente não consigo dar resposta clara quanto a isso. Sempre que polícias, procuradores, querem usar o sistema, podem usá-lo. Facilita o trabalho e diminui o risco de lapsos. Com ou sem sistema, a qualidade das decisões é garantida.

Mas havia vantagem em uniformizar o sistema de norte a sul?

Não consigo ser imparcial. Estamos convencidos que ajudaria e muito.

Há pouco tempo começou no Porto um julgamento com quase 500 testemunhas e 250 inquéritos apensados. Como se prepara um processo destes? Como se faz um julgamento assim?

A realidade é que se trabalha no século XXI com técnicas às vezes do século IX, com post-its e pouco mais. O SIIP é um fato por medida, mais fácil de usar e com resultados melhores. Isso não significa que as pessoas não façam nada, porque fazem mais do que é devido. Isto é uma ajuda.

Este é um projeto gratuito e funcional?

Nós fizemos os protocolos com a PGR e CSM de cedência gratuita. Nem quisemos que fosse de outra forma. Gastámos muito tempo pessoal, muitas horas e uns milhares de euros. É feito por um juiz e dois polícias para agilizar a justiça e ir de encontro às necessidades no terreno.