​A minha geração
20-03-2020 - 06:41

Depois de evitarmos que os nossos pais morram às mãos da Peste (covid-19), teremos de criar os nossos filhos num mundo onde a Fome e a Guerra ficarão mais próximas da superfície. Ou seja, a minha geração começa a ser parecida com a geração dos meus avós.

A minha geração não está a ter uma vida fácil. Quando virou, a roda da história esmagou-nos, primeiro em 2008 e agora em 2020. A grande crise do capitalismo num século. A grande pandemia num século. Os mais velhos poderão dizer que 2008 foi um esvoaçar de borboleta ao pé do tufão de 29, tal como podem dizer que este covid não se compara à gripe espanhola, aquele mata milhares, esta matou milhões. É verdade. Só que os factos não existem num excel quantitativo, dependem da sua percepção emocional.

A minha geração não está a ter uma vida fácil, porque vive numa permanente gestão de expectativas; somos marcados por um constante abismo entre o sonho e a realidade. De resto, o nosso infortúnio histórico começa na nossa sorte inicial. Crescemos no período mais pacífico e próspero da história da humanidade. Os anos 80, 90 e mesmo o início desde século, apesar do 9/11, formaram o período da história da humanidade com menos guerras, mais riqueza distribuída, menos pobreza, mais viagens, mais vitórias sobre as doenças. Crescemos num utopia flutuante sem o sangue e o pó da história; éramos seres sem a mácula da guerra e sem a desumanização da miséria. Éramos elfos, não homens. Só que agora somos chamados à história normal dos homens. Temos de deixar o fato (e as orelhas) de elfo, temos de entrar onde nunca estivemos: na história, esse espaço onde há guerras à Hemingway, epidemias à Camus, pobreza à Steinbeck, e mal à Cormac. A minha geração não sabe lidar com estas realidades, nem sequer tem as linguagens necessárias para falar delas.

A vida da minha geração não está a ser fácil. Depois de evitarmos que os nossos pais morram às mãos da Peste (covid-19), teremos de criar os nossos filhos num mundo onde a Fome e a Guerra ficarão mais próximas da superfície. Ou seja, a minha geração começa a ser parecida com a geração dos meus avós, pessoas que enfrentaram guerras, epidemias, tuberculose, racionamentos. É à história dos nossos avós que temos de ir buscar a coragem para enfrentarmos este presente e o futuro. O diário de bordo dos nossos pais e da nossa juventude não serve.