Portugal: a máquina de fabricar Venturas
30-09-2020 - 06:17

Ventura deveria ser um epifenómeno. No Portugal de hoje, porém, é o megafone verborreico que apresenta más soluções para alguns problemas reais.

Somado à candidatura presidencial, o recente congresso do Chega! pôs toda a gente a falar de quem já muito se falava: André Ventura. O homem tem idade para ser filho de Marcelo Rebelo de Sousa, de Rui Rio, até de António Costa. O homem lidera um partido que é mais ele próprio do que o CDS-PP alguma vez foi Paulo Portas. O homem é a sua própria bancada parlamentar na Assembleia da República. O homem é político por oportunismo e tacticismo, sobre a pele de um puro demagogo que vive do sound-byte e de um misto de justicialismo e vitimização. E, todavia, não se fala de outro homem. O CDS, por causa da pandemia ou mesmo sem ela, liquefez-se e parte do seu eleitorado vai talvez votar Ventura para não votar Marcelo. O PSD, nos dias em que faz oposição, reflete se um dia precisará de um Chega! moderado para ser poder. Do PS para a esquerda, Ventura é um ominoso projeto “fascista”, cuja esmagadora torrente requer uma parede de virtuosos para lhe mostrarem que ele não passará!

Ventura é um deputado entre 230. Por mais sensacionalistas que sejam as sondagens – que também vivem de picar o establishment com este agitador – o Chega! vai nos 8% de intenções de voto. E o congresso do partido, com os dramatismos, as lágrimas e os quase-chiliques do grande líder, e as delirantes moções e vozes que ali passaram, culminando na proposta da castração física das mulheres que abortem, encheu as páginas de imprensa, as caixas de comentários online e as opiniões dos analistas dos media. Como todos os populistas, Ventura esfrega as mãos. Segue à letra a máxima de Oscar Wilde: “falem mal de mim, ou falem bem de mim, o importante é que falem”. E falando, todos os outros fazem o seu jogo.

Convido o leitor a sair deste barulho e a fazer um exercício mental. Recuemos 20 anos, ao princípio do século, a um Portugal ainda embalado pelo patriotismo da Expo’98, bom aluno de uma Europa sem as incertezas de hoje, numa democracia que ainda não envergonhava.

André Ventura e o Chega! poderiam existir, política e mediaticamente, em 2000? Não. O meu argumento é, pois, simples. Parafraseando o título literário de Valter Hugo Mãe, o lento declínio da democracia portuguesa foi oleando a máquina que fabricou Ventura. Porque Ventura é a espuma incómoda à tona das ondas revoltas. E enquanto não percebermos o que foi que insuflou essas ondas, criando uma maré viva, ficaremos à beira-mar, a falar da espuma. As “elites” do sistema não pararam de a golpear nos últimos 20 anos, contribuindo com muitas peças para a máquina de fabricar Venturas. Foi o “pântano”, a “tanga”, o socratismo no poder e o socratismo metido na Operação Marquês, os custos inevitáveis da troika e do resgate, as negociatas do futebol e a corrupção na justiça, o oportunismo da “geringonça” em 2015, o desespero dos incêndios de 2017, a ruína do BES e o sorvedouro do Novo Banco e similares, tudo culminando no ambiente asfixiante de hoje, com partidos que concordam em reduzir o debate parlamentar, juízes que traficam acórdãos e um primeiro-ministro que achou por bem subscrever a “honra” de um corrupto do futebol.

Ventura deveria ser um epifenómeno. No Portugal de hoje, porém, é o megafone verborreico que apresenta más soluções para alguns problemas reais (que outros não atalham), e que, sobretudo, polariza e inflama um crescente e preocupante sentimento geral de desânimo, de desafeição, de revolta, de raiva mesmo, perante um sistema que mergulhou fundo no compadrio, na corrupção, no deixa-andar e na falta de vergonha. Assim estamos, e se calhar assim iremos andar, de Ventura (este André), em Ventura (outros surgirão), até (oxalá não) uma qualquer desventura trágica.