O Verão ainda não tinha chegado e já os hospitais enfrentavam dificuldades nas urgências por causa da falta de médicos.
"Não podemos sistematicamente achar que sobrecarregando os profissionais de saúde com urgências sucessivas vamos conseguir resolver o problema", diz o bastonário da Ordem dos Médicos, em entrevista ao "Público" e à Renascença.
A Procuradoria-Geral
da República pediu ao Tribunal Constitucional que considere inconstitucional o
diploma que estabelece o pagamento das horas extraordinárias. Se acontecer, o
ministro da Saúde acha que não vai haver profissionais suficientes para
garantirem os serviços. Também está preocupado?
Não conheço o parecer que levou a procuradora-geral da República a fazer esse
pedido. O que posso dizer é que neste momento os médicos têm uma sobrecarga,
muitas vezes até desumana, para fazer urgências. Posso dar um exemplo que é
inaceitável, em que temos médicos internos em formação, alguns deles a fazer
estágios em Coimbra ou em Lisboa, que estão a ser pressionados para irem fazer
uma urgência ao Hospital do Algarve. Temos de começar a ter muito bom senso
sobre esta matéria. Temos de começar a organizar o trabalho em serviço de
urgência e ter uma intervenção, porque é verdade que há um problema com a
urgência no nosso país. É esse problema que temos de resolver e não podemos
sistematicamente achar que sobrecarregando os profissionais de saúde com
urgências sucessivas vamos conseguir resolver o problema. O que estamos a
fazer, com essa pressão desmedida, é por vezes quase obrigar os médicos a sair
do SNS, porque ninguém aguenta fazer várias noites de urgência seguidas.
Como se resolve?
Resolve-se reestruturando o serviço de urgência, o SNS, envolvendo a OM. Devo dizer que tenho a pior impressão, neste
momento, daquilo que está a ser feito pela Direcção Executiva do SNS (DE-SNS). E tenho a pior impressão porque, aquilo que
está a ser feito, está a ser feito na sombra. Não sabemos verdadeiramente o que
está a ser feito. Acho que era importante o Ministério da Saúde reflectir muito
sobre isto, envolver os vários agentes da saúde, a OM,
para, em conjunto, tentarmos perceber quais são as dificuldades. Porque tenho
ideia de que muitas vezes a DE não percebe exactamente quais são as
dificuldades. Para isso tem de ir ao terreno, tem de perceber no dia-a-dia
quais são as dificuldades dos médicos nas urgências, o que tem de fazer para
assegurar as consultas, para diminuir os tempos de espera para cirurgia e, em
conjunto, encontrarmos as soluções para o país.
Portanto, dá nota
negativa ao trabalho desenvolvido pela
DE-SNS e pelo ministro da Saúde.
Vou colocar as coisas de outra forma. Não consigo sequer avaliar, porque não
sabemos qual é o trabalho que está a ser desenvolvido. Posso dizer que a DE não
entregou o seu relatório de exame para tentarmos perceber se aquilo que está a
ser feito é ou não positivo. E se não entregou o relatório de exame, então tem
zero. Provavelmente, até é capaz de ter mesmo zero, porque não sabemos aquilo
que está a ser desenvolvido. Já era tempo de a DE promover o diálogo com os
vários agentes.
Mas há medidas
concretas que são conhecidas. A questão dos blocos de partos, das urgências
pediátricas. Concorda com o modelo encontrado?
São medidas de remendo que não têm durabilidade. Aquilo que temos de ter é um
sistema reformado, em conjunto e em diálogo com as outras organizações. Fala-se
muito de uma coisa que parece que é concreta, mas não é: as Unidades Locais de
Saúde (ULS). Aliás, a DE-SNS
fala de uma coisa que é um mistério para mim, que são as ULS 2.0. Tentei perceber o que são, ninguém sabe o que
são. E era muito importante a DE explicar o que quer fazer com as ULS.
Isto é algo de absolutamente estratégico para o país, porque percebemos que há uma reforma em curso - que não é assumida, mas está a acontecer -, que é substituir todos os hospitais e agrupamentos de centros de saúde (Aces) e agrupá-los em ULS. Nada tenho contra as ULS, mas também não tenho nada a favor. Porque não há propriamente evidência, neste momento, que seja um bom sistema.
Nós temos ULS que funcionam relativamente bem, existe uma ou duas, mas infelizmente os hospitais e o Aces que têm mais dificuldades no país, curiosamente, estão inseridos em ULS. Portanto, se há neste momento ULS 2.0, como afirma a DE, gostaria muito de saber exactamente qual é a diferença que nos possa levar a acreditar e a confiar neste modelo. Quero muito que a OM possa ajudar o país a ter aqui uma resposta diferente e melhor. Mas para isso, o Ministério da Saúde e a DE têm que saber fazer algo que não têm feito, que é dialogar e saber colaborar.
Têm apontado o
problema das condições de trabalho. Têm sido entregues muitas escusas de
responsabilidade?
Esses documentos são fundamentalmente um sinal de alerta para o que não está a
correr bem. E o que dizem? Com as condições que temos neste momento, não
conseguimos oferecer uma prestação de cuidados de saúde de qualidade e com
segurança. São um sinal de alerta e de alarme para as instituições e para o
Ministério da Saúde. Aquilo que convido é o poder político não pôr aquilo na
gaveta, como tem feito, mas a tentar perceber efectivamente quais são estas
dificuldades. E sobretudo ajudar a resolvê-las.
Quantas declarações
já foram entregues este ano?
Não sei dizer exactamente quantas foram entregues, mas posso dizer que todas as
semanas recebemos dezenas.
O conselho disciplinar é muitas vezes acusado de demorar demasiado tempo a avaliar denúncias de alegadas más práticas ou negligência médica. No caso das denúncias da alegada má prática no hospital de Faro, dois cirurgiões foram suspensos preventivamente ainda antes de a Comissão de peritos ter chegado a conclusões. A que se deve esta decisão?
O que a OM fez foi accionar um conjunto de dispositivos para analisar o caso de Faro. Um deles é o Conselho Disciplinar da Secção Regional do Sul. Outro, o colégio da especialidade de cirurgia geral e o terceiro, que na altura entendemos que seria importante criar, uma comissão técnico-científica de peritos. O trabalho da comissão não é apresentar nenhuma conclusão, é fazer um levantamento e apurar factos de forma exaustiva.
Esse trabalho ainda não terminou.
Esse trabalho está a ser feito, com grande rigor, responsabilidade e empenho. Como também respeito o trabalho do conselho disciplinar, que é independente do bastonário. É um tribunal autónomo.
Mas porque é que decidiram suspender preventivamente os médicos?
Não tenho acesso ao processo. O processo está no âmbito do conselho disciplinar. Houve aqui matérias relevantes, indícios que levaram a que houvesse uma medida de precaução. Essa medida é a suspensão destes médicos por um período, neste caso de seis meses, até que se possam apurar com mais rigor todos os factos. E foi isso, penso eu, que levou a esta decisão do Conselho Disciplinar do Sul.
No caso da morte de uma grávida que foi transferida do Hospital de Santa Maria para o hospital de São Francisco Xavier, por que só agora o inquérito foi aberto?
Agora houve um relatório da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, que muito concretamente nos disse que havia aqui envolvimento médico. A partir daí, a obrigação da OM é imediatamente remeter o processo para avaliação do conselho disciplinar, que no âmbito das suas competências terá que avaliar o processo à luz das leges artis e do código deontológico.
Recentemente criticou uma orientação da Direcção-Geral da Saúde (DGS) sobre a assistência ao parto normal passar a ser feita por enfermeiros especialistas e pediu sua a revogação. Há novidades sobre o processo?
Não critiquei propriamente a orientação. Critiquei o processo, porque não foi bem conduzido. Não teve a participação integral da ordem dos médicos, como em qualquer processo normal. A ordem dos médicos não aceita esta orientação, já pediu à DGS para a rever. Tanto quanto me foi dito, muito recentemente, vai ser revista. O processo vai ter uma configuração totalmente diferente, que respeite todos os intervenientes. E aqui a OM não foi respeitada do ponto de vista técnico. E se os processos da DGS forem conduzidos desta forma, então a OM não tem disponibilidade para continuar a participar nas comissões de trabalho da DGS.
Não sentiu que foram ouvidos?
A OM não foi ouvida e as opiniões da ordem dos médicos não foram consideradas. E, portanto, o processo não foi regular. Todos os elementos indicados pela OM mostraram vontade em sair dessa comissão. Saíram dessa comissão. Não gosto muito de olhar para o passado. Quero olhar para o futuro. Há aqui condições, segundo aquilo que nos foi transmitido pela DGS, de rever completamente essa orientação.
Se não for revista, a OM não irá colaborar mais em grupos de trabalho da DGS?
Não. Ela tem de ser revista. Mas a OM está a fazer uma reflexão sobre a forma como temos que desenvolver um trabalho que é muito importante. A DGS tem um trabalho importantíssimo, que a OM respeita muito e no qual muitas vezes participa e quer continuar a participar. Mas tem que haver regras, uma colaboração leal entre as duas organizações. Da parte da OM há toda a disponibilidade para colaborar e para existir essa lealdade.
Para ficar claro, se orientação não for alterada, o que é que acontece?
Eu quero que é que o processo corra de forma normal. E há aqui procedimentos que são importantes: que as reuniões sejam convocadas de forma adequada, que todas as pessoas sejam notificadas dessa convocatória e no final, antes de a orientação ser publicada, tem que ser validada por todos os elementos da Comissão. E isso não aconteceu.
Uma vez que já foi publicada, o que acontece agora se não for revogada?
Se não for revogada, a OM vai considerar poder rever a sua participação nas comissões de trabalho da DGS. Isso já foi explicado, até publicamente.
A lei da eutanásia está aprovada. Já disse que não vai nomear um representante da OM para a comissão que avalia os procedimentos clínicos da morte medicamente assistida. Mantém essa posição?
É a posição pessoal do bastonário da OM. Fui muito claro, eu não irei nomear nenhum representante. Agora, há um enquadramento legal que estamos a avaliar, há uma regulamentação que tem de ser desenvolvida e avaliada pela OM, que terá, nesse momento, a sua intervenção. Como bastonário não irei fazer essa nomeação.
Vai dar alguma orientação, como pedem algumas personalidades, para que os médicos não aceitem praticar a eutanásia?
Não estou a pensar dar nenhuma orientação nesse sentido. Houve um momento em que o bastonário se pronunciou sobre essa matéria. Estou agora à espera de ser notificado para nomear um elemento. Nesse momento, a ordem dos médicos tomará sua posição.
Tem noção se há muitos médicos a inscreverem-se como voluntários na Jornada Mundial da Juventude (JMJ)?
Tivemos uma reunião com a organização da JMJ. Foram-nos apresentados vários aspectos de apoio médico e de apoio de enfermagem. A ordem dos médicos ofereceu-se para fazer uma campanha de divulgação junto dos seus associados, para eles poderem ser voluntários.
Tem ideia de número de voluntários já inscritos e de quantos é que serão necessários?
Não tenho uma ideia muito concreta. Penso que serão à volta dos 300. A organização é que poderá confirmar esses dados. Ainda faltam alguns médicos para completar o número desejável. Do ponto de vista da OM, aquilo que a organização das JMJ está a fazer, está a ser bem feito.
Mas em relação ao plano de saúde, parece-lhe que está tudo garantido para prestar assistência na eventualidade de haver um acréscimo de procura?
Em relação a essa matéria defronto-me sempre com a opacidade que temos sentido junto do Ministério da Saúde nessas questões. O plano não foi comunicado à OM. Talvez o Ministério da Saúde entenda que nem sequer tinha que ser comunicado. Mas, da mesma forma que estamos a dar o nosso contributo com a organização da JMJ, a OM também podia, e está disponível para dar o seu contributo ao Ministério da Saúde no âmbito desta Jornada. Esse contributo, obviamente, tem que ser solicitado.