​Já não era sem tempo
05-07-2016 - 14:32

Há muito por explicar na Caixa? Há. Gostaríamos de saber como se chegou aqui? Claro.

Não sei o que fez José de Matos não bater com a porta da presidência da administração da CGD há exactamente um ano, logo que Passos Coelho se declarou “preocupado” com a sua gestão do banco público. Mais inexplicável ainda é o que o fez aguentar seis meses depois de findo o mandato e três depois de anunciada a escolha de António Domingues para o substituir. Assistindo pacientemente à gestão informal de um sucessor que o Governo nem sequer se deu ao trabalho de empossar. Menos mal que José de Matos tenha compreendido que não podia ficar nem mais um dia depois de iniciados os trabalhos comissão de inquérito.

António Domingues (ex-vice presidente do BPI) tem boa imprensa. É apontado por todos como hípercompetente, capaz de realizar em curto espaço de tempo uma reestruturação exemplar com o mínimo de conflitualidade laboral e visão estratégica de futuro. Tomara que seja assim. Isso não justifica que o Governo tenha anunciado em Março a sua escolha e três meses depois ainda permaneça em funções a gestão anterior da CGD, passivamente a assistir à concretização na praça pública das condições impostas pelo sucessor para aceitação do desafio. Aparentemente não só tem carta-branca para formar equipa como já recrutou três outros ex-BPI.

Primeiro, foi a alteração do modelo de governação com a eliminação dos tectos salariais e o alargamento da equipa (para uns megalómanos 19 elementos pagos a peso de ouro), acompanhada da divulgação dos nomes de administradores não executivos mais mediáticos como Leonor Beleza ou Rui Vilar, à mistura com os habituais nomes de ignorantes do negócio bancário provenientes da quota partidária informal, como Bernardo Trindade (ex-secretário de Estado de Sócrates), mostrando que, por mais radical que se pretenda a mudança, muita coisa ficará na mesma.

Depois, foi a passagem para a discussão em praça pública das grandes linhas do Plano de Reestruturação a apresentar em Bruxelas, a par do pedido de autorização de um reforço de capital cujo montante tem sido alvo de generalizada polémica. Centeno já deu uma conferência de imprensa a dizer coisas tão vagas como a intenção de facilitar o crédito às empresas sobretudo exportadoras e a redução da actividade exterior, com excepção da presença em países da CPLP. Na segunda-feira, foi comunicado aos sindicatos o corte de 2500 trabalhadores até 2019 através de rescisões amigáveis. Tudo isto sem esperar a posse dos novos administradores.

Não se sabe o montante final da capitalização, mas é conhecido que a nova administração quer “uma almofada confortável” em investimento na nova estratégia. Os 4 mil milhões de que se falava antes já passaram a 5,1 mil milhões (sujeitos ainda à aprovação de Bruxelas). “Demais”, garante o PSD, que afirma que as necessidades de capitalização conhecidas pelo anterior Governo não iam muito além de metade. Mas, se acrescermos ao mal-parado já conhecido, os mais de 700 milhões de reforço de rácios de capital reivindicados pela nova supervisão europeia e os mil necessários para as reformas douradas necessárias à compra da paz social, ainda ficam mil milhões por explicar. Muito, para quem só nos últimos anos, além de ter recebido um aumento de capital de 1,6 mil milhões, recebeu muito mais de mil milhões só com a venda da Caixa Seguros (Fidelidade, Multicare, etc.) aos chineses da Fosun. Para onde foi esse dinheiro?

Não foi fácil a gestão de José de Matos. Em 2011, quando chegou à Caixa, tinha nada mais, nada menos do que uma carta de missão imposta pela Autoridade Bancária Europeia que lhe impunha a venda, em plena recessão e em apenas dois anos, de todas as participações detidas junto de uma série de empresas cotadas. Zon, PT, EDP, e BCP acabaram palco das mais variadas lutas de accionistas em resultado da saída da Caixa. Cada venda, cada polémica. Seguiu-se a saída dos negócios na saúde, vendidos aos brasileiros da Amil (em 2012) e por último a venda da jóia da coroa (Fidelidade), que fez dos chineses donos da quase totalidade do mercado segurador nacional.

Pelo meio, a Caixa apresentava pela primeira vez prejuízos logo em 2011 (488 milhões). Desses, pelo menos 133 explicados pela exposição à dívida grega. Somaram-se mais 13.018 milhões nos três anos seguintes. Só no primeiro semestre de 2015, com uns míseros 3,4 milhões de lucro, o banco começou a levantar cabeça. Por essa altura dizia já Passos Coelho, na “redacção aberta” do “Jornal de Negócios”, que o atraso de pagamento do empréstimo de 900 milhões concedido pelo Estado no quadro de um reforço de capital (num total de 1,6 milhões) o fazia ver a gestão do banco público “com preocupação”. José de Matos demitiu-se a seguir? Não. E foi demitido? Também não.

Dada a primeira machadada na confiança no banco, as duas partes limitaram-se a assobiar para o lado como se nada se tivesse passado. Passados nove meses, Costa chegou e não fez melhor. Findo o mandato em Dezembro, seis meses depois ainda nada mudou.

Com a gestão paralisada, multiplicam-se os protestos contra a incapacidade de fazer chegar dinheiro à economia. Pelo meio ainda se pensou complicar mais o quadro da actuação do banco público com a integração do Banif, que Bruxelas acabou por inviabilizar. Hipótese reposta agora para o Novo Banco. Se a venda se mostrar impossível em tempo útil, a nacionalização via integração na CGD não está ainda excluída, apesar das declarações em contrário de Mário Centeno. Recorde-se que o Novo Banco tem estatuto de “banco de transição”, o que implica a sua venda no prazo máximo de dois anos, que estão prestes a esgotar-se.

Com a incerteza na Europa provocada pelo “Brexit” este não é o melhor momento para fazer uma venda desta dimensão. E quer a rede de balcões do Novo Banco quer o perfil das empresas clientes ajusta-se como uma luva ao perfil anunciado para a nova Caixa. Centeno excluiu expressamente a hipótese de integrar o Novo Banco na CGD, mas no mercado há quem jogue na “memória curta” do povo e na condescendência dos analistas.

Quanto à comissão parlamentar de inquérito que vai fazer a autópsia do corpo vivo da Caixa não se augura nada de bom. De uma investigação a 16 anos de actividade de um megabanco, através de uma equipa esmagadoramente impreparada e desconhecedora do ramo de negócio, só se pode esperar algo entre o inútil e o prejudicial. Quer se trate de confirmar a ruinosa atribuição de créditos a meia dúzia de negócios que todos conhecemos ou de escalpelizar as contas de uma instituição expondo-lhe as fragilidades à concorrência com danos reputacionais e de confiança evidentes. A vingança do PSD à governação Sócrates pode ainda fazer ricochete na anterior maioria, uma vez que PSD e CDS não estão também isentos de responsabilidades anteriores.

Há muito por explicar? Há. Gostaríamos de saber como se chegou aqui? Claro. Mas com esta comissão duvido que se atinja o objectivo. A concorrência vai esfregar as mãos e o banco de todos nós há-de valer ainda um pouco menos quando acabar a refrega. Não se anunciam competência nem meios disponíveis para ganhar em esclarecimentos. Resumindo: danos certos e benefícios incertos. Como sempre.