Que fato vestiu Marcelo na televisão
03-11-2020 - 12:00

Marcelo colou-se excessivamente ao Governo de que, segundo as suas próprias palavras, não podia “des-solidarizar-se? Exagerou? Não creio.

O que levou Marcelo Rebelo de Sousa a dar uma entrevista em que não se deixa entrevistar? O que explica que o chefe de Estado tenha ressuscitado segunda-feira, na televisão pública, os velhos comentários de domingo? Desempenhando, como ele próprio referiu respondendo ao que sabia ser a pergunta mais frequente entre os espectadores, o “papel de uma espécie de comentador de bancada”? Será que havia necessidade? E será que resultou?

Os portugueses que ansiavam por ouvir o chefe de Estado num momento de extrema-gravidade e múltiplas crises podem ter pensado, em dada altura da entrevista, que estavam a assistir a uma conversa com um ministro da presidência e que a este até estava a correr particularmente bem.

Não fora o tom sarcástico que ía transformando cada louvor numa espécie de critica e pareceria um ministro de Costa, com uma rara visão de conjunto, capaz de defender todos os erros do Governo (da falta de planeamento do ministério da Saúde, à ausência de diálogo e coordenação com a Segurança Social) de forma bem mais inteligente e eficaz do que o próprio chefe do Governo. Esses terão sentido no final que se tinham enganado no canal onde era suposto estar-se a assistir a uma entrevista o chefe de Estado. Na ausência de outros argumentos em defesa do governo PS lá vinha a comparação internacional e o ziguezaguear de todos os dirigentes, um pouco por todo o mundo, num comum navegar à vista com avanços e retrocessos.

Marcelo colou-se excessivamente ao Governo de que, segundo as suas próprias palavras, não podia “des-solidarizar-se? Exagerou? Não creio. O Comentador, porque foi ele que vimos naquela original conversa, não poupou a Costa as habituais “pantufadas” reservadas a qualquer governo: “ houve atrasos? Contradições? Zigue-zagues? Sim”. Houve isso tudo, e acrescentou para que não restassem dúvidas: “eu não digo que não houve erros, nem estou a desculpar o Governo levando mais longe a crítica - por cada 50 erros que os portugueses apontam … eu encontro muitas mais deficiências” (cito de memória).

Dito isto, concretizou que houve evidentes “atrasos nas contratações”, e nas compras de equipamentos e muitos “mortos diretos e indiretos da Covid (quando falou do luto nacional, deixando antever que ficaram doentes negligenciados por insuficiente planeamento)”. O Presidente não resistiu a acrescentar de forma tão excessiva e teatral que só podia soar a falso: “eu sou o principal responsável por todos esses erros”, e como se isto não bastasse ainda sublinhou, “eu estou a assumir a responsabilidade suprema por tudo isto”.

Imaginando uma TV sem som, ver o presidente a gesticular como nos velhos tempos com a legenda em gordas a afirmar “eu sou o responsável supremo por todos os erros” acompanhado daquele sorriso “maléfico” que nos faz imaginar que está a pensar naquele exacto momento “saí-me bem com esta?! Não saí?”. Só pode ter gerado, à direita, uma enorme sensação de fúria e à esquerda um ligeiro arrepio: também não precisa exagerar…

Exagerou. É caso para recordar ao presidente que por muito que ele se sinta investido de missão vagamente salvífica da Nação, mesmo que ele se sinta uma espécie de pai/ avô de todos os portugueses, não é. O Regime pede-lhe muito, mas não lhe pede que assuma as dores do Governo nem que exerça o poder executivo. O seu poder é de influência e não sendo pouco o regime está longe de ser presidencialista. Os seus poderes são muitos mas não lhe cabe nem Governar nem assumir os erros típicos da governação.

Aliás Marcelo sabe-o muito melhor do que todos nós. Basta ver a forma como se demarcou do modo como decorrerá o próximo Estado de Emergência e os avisos que deixou. Será nos termos solicitados pelo Governo embora com o aval presidencial depois de ouvidos os partidos. Aliás, já percebeu que não estão criadas as condições para repetir a unanimidade do confinamento generalizado ocorrido na primeira vaga.

Aqui chegados (como diria Marques Mendes) para que serviu esta conversa presidencial em que nem na questão dos Açores Marcelo Rebelo de Sousa se desviou do próprio guião e acabou a dar a espantosa resposta de que só podia falar depois do ministro da República?

A visão benigna, que para mim é a única a fazer sentido, serviu para tentar mais uma vez cimentar uma vida política que começa a desfazer-se em cacos. Serviu para dizer aos que apostam no quanto pior melhor que estão enganados porque nenhum desastre fará cair o frágil Governo de Costa. Marcelo avisou: o Governo não cairá. Nem sairá mais cedo só pode é ficar ainda mais frágil e todos perderemos com isso.

Para Marcelo é óbvio que a uma pandemia a que ameaça juntar-se uma crise económica e social de dimensões desconhecidas o pior que nos poderia acontecer era somar-lhes uma crise política. Essa tanto quanto estiver ao seu alcance não acontecerá. Primeiro porque não há, sequer, condições legais para que aconteça uma vez que o presidente não pode nem quereria dissolver o Parlamento nem antes nem imediatamente depois da reeleição. Depois porque o seu sentido de Estado o impediria sempre de o fazer. Ficar um ano de mãos atadas, sem política orçamental e a viver em duodécimos é por isso um risco real. Querem os portugueses corrê-lo?

Aqui chegados, porquê esta entrevista? Para que não se possa dizer que Marcelo não fez os possíveis e os impossíveis para unir os portugueses em tempos de contestação e confronto. E para que na próxima intervenção ao país posso vestir finalmente o fato de presidencial e não deixar os ralhetes pela metade. O novo confinamento pode ser “suave” na condição de que seja suficientemente eficaz. Haja o que houver e doa a quem doer.

E já agora, claro que o disparate da proibição das feiras de levante ainda bem que foi corrigido de imediato. E, ao dizê-lo, Marcelo Rebelo de Sousa deixou um último aviso: a ver se pensam antes de cometer este tipo de disparates, porque para a próxima já não garantirei toda esta solidariedade. E não venham dizer que não vos ajudei. Porque mais era impossível. Certo? Ficou claro, senhor Presidente.