Em julho, foi recebido com compreensível satisfação o anúncio da chamada “bazuca” europeia: 750 mil milhões de euros para combater a aguda crise económica e social provocada pela pandemia. E foi justamente realçada a maneira como grande parte desse dinheiro seria financiada – através da emissão de dívida da Comissão Europeia, um passo inédito.
A Comissão já foi duas vezes aos mercados vender títulos de dívida, com assinalável sucesso. Na semana passada, por exemplo, obteve 14 mil milhões de euros, com juros negativos para dívida a 5 anos e juros perto de zero para prazos mais longos. A procura destes títulos de dívida foi 12 vezes superior à oferta.
Entretanto, sucederam-se sinais da parte dos governos da Hungria e da Polónia de que iriam reagir contra condicionar a entrega de fundos ao respeito pelo Estado de Direito dos países membros beneficiados. Esta semana, esses dois países bloquearam o prosseguimento da referida emissão de dívida, por causa daquela condicionalidade.
Não foi uma surpresa. Nesta coluna, no passado dia 11, foi dito que o anunciado bloqueio da Hungria e da Polónia era um problema ainda não ultrapassado. Será Merkel capaz de o ultrapassar, no último mês da presidência alemã da UE? Seria excelente, até porque o atraso na canalização de fundos penaliza sobretudo os Estados membros, como Portugal, que possuem menores recursos financeiros.
Ora, se na presidência alemã esta questão não for resolvida, caberá à presidência portuguesa tentar ultrapassá-la.
Em julho passado, António Costa defendeu que se separasse o recebimento dos fundos do respeito pelo valores e regras do Estado de Direito, até porque estão em curso processos de infração aos governos húngaro e polaco por alegadas violações dos valores e regras da democracia. Eliminar a condicionalidade pela prevalência Estado de Direito seria uma cedência à Hungria e à Polónia, não muito honrosa para a UE. E não parece provável que o Parlamento Europeu a aceitasse.
Ontem, avançou o primeiro relatório anual sobre o Estado de Direito elaborado pela Comissão Europeia e que o Conselho irá apreciar. Para já, trata-se do primeiro grupo de cinco países (Bélgica, Bulgária, República Checa, Dinamarca e Estónia). O processo de avaliação implica um diálogo com os países examinados, que serão todos os membros da UE, procurando uma compreensão mútua sobre a cultura do Estado de Direito.
Irá essa compreensão até ao ponto de aceitar uma “democracia iliberal”, como o próprio V. Orban classifica o regime do seu país? Ou será possível encontrar um qualquer esquema que permita ladear a obstrução da Hungria e da Polónia? Em causa não está apenas a concretização da desejada “bazuca”, mas a própria natureza da UE.