Mães olímpicas. Ana Cabecinha e o "piquinino" foram ovacionados em Paris, mas conseguir ser mãe e atleta ainda é um parto difícil
10-08-2024 - 08:30
 • Salomé Esteves

Se há uma história de 104 anos de atletas a competir em plena gravidez ou com bebés de colo, em Portugal, ser mãe e atleta é “impensável”. A Renascença falou com Ana Cabecinha e viajou no tempo na história das mães olímpicas. Este ano, os Jogos contam, pela primeira vez, com um berçário.

O mês de maio já ia a meio quando Ana Cabecinha foi mãe. Mas nem três meses depois, a 1 de agosto, terminou os 20 quilómetros de marcha em Paris. Num final de corrida e de carreira olímpica feliz, confessou aos jornalistas que, “como é óbvio, em dois meses e meio não se prepara uma prova de 20 quilómetros, muito menos depois de se ter sido mãe”.

Ao cruzar a meta, a atleta recebeu uma das maiores ovações do dia: “Estou muito feliz por não ter baixado os braços e por ter todos os dias um bebé em casa tranquilo, que me tem deixado treinar e descansar”, acrescentou aos jornalistas.

Ana Cabecinha não foi a primeira, a única, nem certamente será a última mulher na história a participar nos Jogos Olímpicos com um bebé ao colo ou na barriga.

Aliás, a atleta portuguesa não esteve sequer sozinha na delegação de mães olímpicas que competiram em Paris. Nada Hafez surpreendeu e correu a Internet por esgrimar com uma barriga de sete meses. Yaylagul Ramazanova, que está no fim do segundo trimestre, sentiu um pontapé antes de disparar ao centro do alvo na prova de tiro com arco. E a australiana Keesjan Gofers pode abraçar a sua bebé ao sair da piscina, depois dos jogos de pólo aquático.

Este ano, pela primeira vez nos Jogos Olímpicos, atletas e treinadores que tenham crianças pequenas têm um espaço dedicado para passar tempo com os seus filhos. O novo berçário fica na aldeia olímpica e está aberto a famílias com crianças de colo que estejam em fase de amamentação ou que usem fralda.

O berçário estava aberto a bebés com mais de três meses e era sujeito a candidatura. À Renascença, Ana Cabecinha diz que a organização aceitou o seu processo, mas, porque o bebé ainda tinha pouco mais de dois meses, ficou ao cuidado do pai quando a atleta estava a treinar ou em prova.

Em Paris, a família e o treinador, Paulo Murta, foram essenciais para ajudar a gerir a logística de ter um mini olímpico de colo ao colo. Mas Ana Cabecinha garante, em conversa com a Renascença: “Ele porta-se muito bem. Enquanto eu treino, ele dorme ou está com os olhinhos abertos muito quietinho. Talvez por ter treinado a gravidez toda, ele percebeu que a mamã tinha de treinar”.

"Talvez por ter treinado a gravidez toda, ele percebeu que a mamã tinha de treinar”

Este foi um avanço celebrado por atletas, famílias e organizações, mas não surgiu num vácuo. Durante anos, várias mulheres de modalidades diferentes têm insistido publicamente e perante as instituições que os eventos desportivos têm de adaptar-se e acolher com dignidade atletas que tenham filhos.

Allyson Felix, atleta pelos Estados Unidos, foi uma das vozes mais obstinadas na luta por mais direitos e melhores condições para famílias olímpicas. A corredora de atletismo mais medalhada da história dos Olímpicos, agora reformada, aliou-se à marca que patrocinou o berçário de Paris.

À Reuters, Felix fala de uma “mudança na cultura”, acrescentando que “agora vemos que há mulheres no pico das suas carreiras que podem ter filhos, se assim quiserem, e isso não significa que têm de parar de competir”.

A judoca Clarisse Agbegnenou, que este ano já venceu medalhas de ouro e de bronze, em judo, também fez uma ávida campanha para que o Comité Olímpico Francês disponibilizasse quartos de hotel para atletas que estivessem a amamentar.

Para a atleta francesa, a maternidade e o desporto profissional complementam-se. Desde que foi mãe, no final de 2022, tem participado em campanhas de sensibilização dedicadas a bebés permaturos e a mães atletas.

Ainda que haja cada vez mais vozes a aclamar a maternidade do desporto, este ainda é um assunto que afeta muitas atletas. Receios de perder a forma ou oportunidades, ou até de ser incapaz de recuperar da gravidez e de regressar ao ativo afastam muitas desportistas profissionais de engravidar.

Ana Cabecinha é uma dessas atletas, que durante anos priorizou a carreira atlética em detrimento de criar uma família. Agora, confessa, percebe “que podia ter tirado um ano para [se] dedicar à maternidade” ou “podia não ter só um ‘piquinino’, tinha tido mais filhos”. À Renascença, sublinha que o treinador, Paulo Murta, sempre foi muito encorajador, lembrando-a para se ver “primeiro como mulher”.

A marchadora lamenta que, em Portugal, gerir a maternidade e o desporto seja mais difícil do que lá fora. “Noutros países, há atletas que foram mães mais do que uma vez e voltaram sempre. E algumas que ganharam medalhas olímpicas” e “em Portugal isso é impensável”, porque as atletas portuguesas, no passado, “só foram mães depois de acabar a carreira e outras nem conseguiram engravidar, infelizmente”.

“Noutros países, há atletas que foram mães mais do que uma vez e voltaram sempre. E algumas que ganharam medalhas olímpicas”

Se Paris venceu no berçário, Tóquio não chegou ao pódio

Enquanto o berçário é uma completa novidade nestes Jogos Olímpicos, atletas e bebés já tinham sido acomodados na edição de Tóquio, ainda que com menos condições.

Há três anos, a organização também designou um espaço para amamentação, mas apenas após a insistência de atletas como Kim Gaucher (basquetebol), Alex Morgan (futebol) e Aliphine Tuliamuk (maratona).

Na altura, a pandemia de Covid-19 obrigou à restrição do número de pessoas em circulação nas instalações e, inicialmente, os atletas não foram permitidos de se fazer acompanhar de membros da família, mesmo bebés pequenos. Depois de várias críticas, a organização concordou fazer uma avaliação caso a caso, tanto para os Jogos Olímpicos, como para os Paralímpicos.

Edina Müller (para-canoagem) foi uma das atletas que pôde viajar para o Japão com o seu filho depois de a organização mudar de ideias.

Numa publicação na sua conta de Instagram, em julho de 2021, Müller disse: “os Jogos Olímpicos e Paralímpicos têm uma responsabilidade social e devem ser modelos, especialmente quando falamos de igualdade e dos direitos das mulheres”.

Contudo, segundo testemunhos de esta e de outras atletas em 2021, em Tóquio, a sala dedicada à amamentação foi um espaço interior e sem janelas, em ambas as competições.

Uma história de mães e bebés olímpicos

Mas apesar de estes avanços serem bem recentes, há pelo menos 104 anos que os bebés também fazem parte das olímpiadas.

O ano era 1920. Magda Julin estava grávida de quatro meses, quando entrou no gelo e arrecadou uma medalha de ouro em patinagem artística. No ano seguinte, competiu novamente, nos Campeonatos Nórdicos de Patinagem.

Passados 32 anos, Juno Stover-Irwin seguia as passadas de Julin, ao conseguir uma medalha de bronze no segundo trimestre da sua segunda gravidez, em mergulho. Em 1956, voltou a chegar ao pódio, já mãe de uma menina.

Cornelia Pfohl (tiro ao arco) participou grávida nos Jogos Olímpicos, não apenas uma vez, mas duas: em 2000 e 2004. De Sidney, levou uma medalha de bronze, mas, em Atenas, no início do terceiro trimestre de gravidez, não conseguiu chegar ao pódio.

Foi por um triz que Nur Suryani Mohd Taibi não participava nos Olímpicos de Londres, em 2012. Mas, aos oito meses de gravidez, a atleta conseguiu competir, na modalidade de tiro. À BBC, confessou, nesse ano, que a gravidez lhe dava uma vantagem: “Agora tenho equilíbrio à frente e atrás. Por isso, a estabilidade é maior”.

Dois anos depois, no inverno de 2014, a italiana Martina Valcepina não estava apenas a gerar um bebé, mas dois. A patinadora velocista participou nos Olímpicos de Inverno, em Sochi, no início da sua gravidez e arrecadou uma medalha de bronze.

A participação num evento desportivo desta dimensão exige uma preparação intensiva e prolongada. Para as atletas que competem grávidas ou pouco depois de darem à luz, há cuidados redobrados e novos rituais que têm de ser acomodados no treino.

Ao longo dos anos, não foram poucas as mulheres que tiveram de o fazer, em várias modalidades, como Andy van Grunvsen (hipismo), Kristie Moore (curling), Amelie Kober (snowboarding), Kerri Walsh Jennings (vólei), Kim Rhode (tiro), Anna-Maria Johansoon (andebol).