A liberdade cristã deve ser vivida na cidade. A cidade não tem de ser a Babilónia. E, mesmo quando ela é esse espaço ímpio e árido, é para lá que devemos caminhar. Jonas, Jesus e Paulo caminharam na direcção das cidades, partiram da fonte, o deserto, e andaram na direcção da foz, a cidade.
Não uso a imagem do rio por acaso. Se a liberdade cristã deve ser vivida a jusante na cidade, também é verdade que tem de ser plantada a montante no silêncio do deserto, no silêncio do monte, da horta, da aldeia, da quinta. Aos quarenta anos, não tenho dúvidas: nós mirramos se os nossos pés só pisarem chão de cimento ou alcatrão. Há de facto uma centelha de renovação física e mental no contacto com a terra, no mexer nos torrões, no mondar, no esculpir regueiros de rega com o sacho, no colher frutos da árvore.
Hoje em dia, parece-me que a terra é ainda mais revigorante devido à desmaterialização do trabalho da cidade. Na vida de escritório e dos computadores, as pessoas não vêem nem tocam no resultado final do seu trabalho. A vida na horta ou quinta traz de volta esse cordão umbilical: o contacto directo e manual com o produto do nosso trabalho.
Também é por isso que as hortas urbanas podem ter um papel determinante. Espero que não sejam uma moda passageira como tantas outras, mas sim um novo hábito estruturante. A este respeito, é importante ler o livro “Raízes – O campo na cidade” de Ana Sofia Fonseca.
Percorrendo várias hortas de Lisboa, a autora mostra precisamente a face quase litúrgica do trabalho rural: a horta é “um suspiro no betão”; pegar no sacho ou colher cenouras e batatas é para estes lisboetas um acto de renovação diário, um escape do trânsito e do tal trabalho desmaterializado e, por isso, frustrante. Ali “limpam a cabeça” num espaço que tem “outro tempo”, um tempo que lhes permite “comer o que vêem crescer”, um tempo que lhes permite criar laços de vizinhança. Sim, as hortas estabelecem laços efectivos entre vizinhos, que, sem a partilha da terra, permaneceriam perfeitos estranhos.
Como alguém diz algures no livro, a guerra estética que se lançou contra as marquises devia ser alargada aos logradouros que foram cimentados ou alcatroados e depois abandonados. E repare-se que, no caso dos logradouros, não se trata apenas de estética. Um espaço verde, jardim ou horta, é um espaço social de vizinhança.
Onde é que eu quero chegar? A revolução verde não é necessária por causa do ambiente ou dos animais, é necessária por causa das pessoas. A terra humaniza-nos. Jesus caminhou para Jerusalém, mas começou na Galileia.