Orçamento de Estado
18-01-2019 - 06:43

Uma coisa é estar a favor ou contra políticas dirigidas à equidade, à correcção das enormes (e crescentes) desigualdades de rendimento, riqueza e consumo. Outra coisa é estar a favor ou contra um caminho específico para lá chegar.

Um dos aspectos que mais distingue os partidos do espectro político é o modelo económico que preconizam. Ora, o modelo económico reflecte-se, em grande medida, no orçamento do Estado. Assim, a propósito - e com algum atraso - do debate sobre o Orçamento do Estado para 2019, junto algumas reflexões sobre o papel do Estado na economia.

Em primeiro lugar, há que definir a dimensão do orçamento. Partidos de esquerda tendem a propor orçamentos de grande dimensão, enquanto que partidos de direita tendem a propor orçamentos de menor dimensão.

O peso do Estado é, assim, uma fonte de debate.

No entanto, creio que, mais do que o volume da despesa, o aspecto crucial é a natureza da despesa. Correndo o risco do simplismo, diria que há três grandes categorias de despesa pública: a provisão de bens públicos (e.g., defesa nacional); a provisão pública de bens não públicos (e.g., a educação, a saúde); e as prestações sociais (e.g., transferências).

(Digressão: Um bem público é um bem não rival e sem possibilidade de exclusão: se eu oferecer defesa nacional à pessoa X estou também oferecendo, sem custo adicional, defesa nacional à pessoa Y, e, aliás, seria impossível ou muito difícil excluir a pessoa Y dos serviços de defesa nacional oferecidos à pessoa X. O discurso comum dos comentadores e políticos confunde bens públicos com bens providos pelo Estado, mesmo que estes últimos não sejam bens públicos; mas parece-me importante fazer esta distinção técnica com importantes implicações práticas.)

Em Portugal, tem havido algum debate sobre projectos da primeira categoria, isto é, bens públicos. Lembro-me, por exemplo, da construção do TGV, uma proposta de há cerca de uma década. Tem também havido alguma debate (menos) sobre a terceira parcela da despesa do Estado, isto é, sobre o grau de progressividade do sistema de redistribuição de rendimento (tipicamente a esquerda tende a acentuar a equidade, enquanto que a direita tende a acentuar os custos económicos da progressividade).

Apesar destas diferenças, a área em que mais se sente a clivagem entre esquerda e direita é a provisão pública de bens não públicos: habitação, saúde, educação, etc. A clivagem é a seguinte: a esquerda insiste na oferta destes bens com base num sistema único, uniforme e centralizado; a direita, pelo contrário, preconiza a oferta destes bens com base em mecanismos de mercado, sendo a função do Estado Social a redistribuição de rendimento que permita acesso a esses bens.

Uma das características infelizes da política portuguesa é o diálogo de surdos a que se tem assistido neste aspecto. Uma coisa é estar a favor ou contra políticas dirigidas à equidade, à correcção das enormes (e crescentes) desigualdades de rendimento, riqueza e consumo. Outra coisa é estar a favor ou contra um caminho específico para lá chegar.

A forma como a esquerda tipicamente caracteriza a direita é aplicar o letreiro pejorativo de "ultra liberal" ou "Chicago boy", a que se atribui o princípio de que "todos temos igualdade de oportunidades, logo o mercado livre não só é garantia de eficiência mas também garantia de justiça social". Ora, o conjunto de pessoas que pensam desta forma é essencialmente um conjunto vazio. No entanto, o "straw man" do "ultra-liberal" continua na ordem do dia - e, convenhamos, funciona. (A direita também tem os seus "straw men" com que ataca a esquerda, mas parece-me que não há nada mais pernicioso do que a figura imaginária do "ultra liberal".)

As minha convicções sempre foram de que a igualdade de oportunidades é uma utopia inatingível; e que, sem prejuízo do princípio da subsidiariedade, o papel redestributivo do Estado Social é indispensável - aliás, mais importante no séc. XXI do que foi no séc. XX. Sou favorável a um sistema de solidariedade social efectivamente muito progressivo: os ricos têm de ajudar os pobres, e os muito ricos ainda mais. No entanto, nada disto implica que o Estado tenha de prover bens não públicos de forma supletiva em relação ao mercado.

Sou, no sentido destas posições, uma pessoa de direita ou uma pessoa de esquerda? Não sei. É difícil responder a esta pergunta porque o espectro político é caracterizado numa dimensão única, quando na realidade há várias dimensões. É como se tivéssemos um rádio com dois botões (volume e sintonizador): eu concordo com os partidos da esquerda que o botão do volume dever estar a um nível alto (nível de solidariedade social); mas discordo profundamente com os partidos da esquerda sobre a posição do botão do sintonizador (provisão de rendimento vs. provisão de bens não públicos).