Eram cerca de uma dezena. Sentaram-se em cadeiras numa sala de estar de um andar em Lisboa. O anfitrião foi o Embaixador de Israel, que explicou o objetivo do encontro: dar voz àquela delegação de familiares de reféns ainda nas mãos do Hamas, em Gaza. Todos traziam t-shirts ou pequenos cartazes com o mote «Bring them home now!». Quem ali estava para os ouvir talvez já os tenha visto, ou outros iguais a eles, nas notícias dos canais portugueses que mostram os murais com rostos de reféns nas ruas de Israel, e os familiares pedindo a sua libertação. Mas vistos no ecrã, por um breve momento da nossa fugidia atenção, esses rostos e vozes chegam-nos de muito longe.
Desta vez, estavam ali, seres reais, para falarem connosco, para responderem às nossas perguntas, para nos pedirem que falemos por eles. Cada testemunho foi acompanhado por um pequeno vídeo, feito de filmagens domésticas de momentos passados do familiar cuja normalidade de vida terminou brutalmente na manhã de 7 de outubro de 2023. Ouvimos os nomes dos que ali estavam, o seu parentesco com o familiar raptado, o que sabem, ou não sabem, dele ou dela, o que e quem ele ou ela deixaram para trás. Or foi um dos raptados e a mulher assassinada. O irmão de Or, com um urso de peluche nas mãos, ali falou em nome do filho de ambos, órfão de mãe e agora sem pai, que vive com os avós. Veio depois a mãe de Idan, o pai de Omri, ou o irmão de Omer. Os testemunhos tinham a uni-los vozes embargadas, corpos trementes, olheiras fundas, uma incomensurável tristeza e uma incontida raiva.
Não têm vida para viver há 124 dias. O tempo está a esgotar-se e percebe-se que é a muito custo que mantêm (alguma) esperança. Os pormenores que contam, sentindo que estão entre gente que os ouve, são brutais e não passam nos media portugueses. Entre os vídeos mostrados, estavam imagens filmadas pelos próprios terroristas do Hamas, que as postaram no Facebook das vítimas (!). Dani, o mais velho da delegação, falando em hebraico, diz-nos que há quatro meses que envia mensagens de WhatsApp ao filho, raptado do Kibutz de Nahal Oz; não obtém resposta. Chora desde então, e tem como único foco poder um dia chorar, não de tristeza, mas de alegria por reencontrar o filho.
A dinamizadora do grupo, e tradutora de hebraico para inglês, pergunta-nos o que faríamos nos minutos, horas, dias e semanas seguintes ao rapto de um familiar nosso. Dos 136 reféns ainda em Gaza, dez têm nacionalidade portuguesa. “Vocês não convivem com o terrorismo”, diz-nos. Na rua, ouve-se uma ambulância com a sirene ligada; instantaneamente, todos os israelitas naquela sala reagiram, nervosos, ao som que tão bem conhecem. A conversa vai fluindo. Querem apenas que oiçamos as suas histórias, que delas possamos dar testemunho, nos círculos políticos, na opinião mediática ou nas salas de aula. Reiteram que a questão não é política; é de sofrimento humano. Eles viram, ouviram, sabem que pessoas sangue do seu sangue estão, se vivos, em indescritível provação, sem nada terem feito para que o inferno lhes caísse em cima.
Quando alguém levantou a questão da proporcionalidade - o massacre de 7 de outubro versus os milhares de palestinianos já mortos pela ação de Israel em Gaza - ou das vias diplomáticas para um qualquer cessar-fogo, uma das jovens israelitas lembrou, pedindo desculpa pela franqueza, que não é possível construir um Estado (palestiniano) em cima de assassinatos, raptos e violações. Porque foi desses crimes que ali se falou - os crimes que o Hamas decidiu perpetrar. Porque são esses crimes que traumatizam quem ali estava. Histórias reais, que precisamos de ouvir - para que aquilo que se passa lá longe não seja apenas um infeliz conflito que se passa…lá longe.