A Rueff
10-01-2020 - 06:33

Eu gosto da Rueff mesmo quando não gosto do papel que ela está a fazer. A Rueff é lá de casa. Quando fiquei a par do ataque cardíaco que ela sofreu, senti tristeza, aquela tristeza que se sente perante a dor de um vizinho.

Quando um famoso morre ou cai na cama, há sempre uma onda de comoção coletiva. A sociedade transforma-se num padre mediático que dá a extrema-unção aos pés da cama do famoso. Até há, parece-me, um desejo mórbido por estes momentos. A questão é se nós entramos ou não nessa tristeza colectiva. Muitas vezes, não entramos nem percebemos a comoção. Ficamos a assistir de longe, porque aquele famoso em particular nunca entrou lá em casa de forma íntima. Mas claro que há casos em que sentimos a morte ou a doença de um famoso. Foi assim com o Bourdain, por exemplo. Foi assim há dias com o ataque cardíaco da Maria Rueff. Eu gosto da Rueff mesmo quando não gosto do papel que ela está a fazer. A Rueff é lá de casa. Quando fiquei a par do ataque cardíaco que ela sofreu, senti tristeza, aquela tristeza que se sente perante a dor de um vizinho. Nestas cidades modernas que matam os laços de vizinhanças, os famosos, sobretudo os actores, são vizinhos omnipresentes.

A Rueff é lá de casa, porque faz parte da tribo do Herman. E, como já escrevi noutro lugar, a tribo do Herman ajudou a salvar-me num dado momento. A Rueff é lá de casa, porque ela é uma das pessoas em Portugal que mostram com uma transparência cristalina a fragilidade do artista, seja ele ator, comediante, escritor, etc. Rueff é obviamente tímida e encontra no palco aquilo que os tímidos sempre encontram nos palcos desde o princípios dos tempos: a superação dessa timidez. Ao serviço do tímido, o palco é mesmo catarse. Dele e nossa. No palco e perante uma audiência em silêncio, o tímido muda mesmo o mundo.

Quando leio biografias de artistas, a parte que mais me fascina é precisamente esta: são quase sempre criaturas tímidas, têm milhões de fãs mas continuam a ter um ego frágil. Até heróis de guerra são assim. Horatio Nelson já era o herói da batalha do Nilo, a maior batalha naval do século XVIII, mas continuava a ter uma insegurança brutal. Até os heróis do desporto são assim. Tom Brady tem 42 anos, cinco ou seus anéis de campeão, é o maior jogador de futebol americano desde século, mas parece que continua a ser o menino inseguro do início. Querem outro exemplo, mais próximo da nossa realidade? A Amália tinha uma fragilidade assustadora. Para terem uma ideia, a sua dama de companhia, digamos assim, dormia muitas vezes à porta do seu quarto. As divas têm medos de criança. E é essa candura infantil que depois nos desarma no palco ou numa entrevista como aquela que Rueff deu às Três da Manhã aqui na Renascença. Que para a próxima parta apenas uma perna, é o que lhe desejo.