Depois da "união de facto" com Costa, Marcelo tem de fazer "igual" e "lutar para que o OE passe"
20-06-2024 - 07:00
 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Liliana Borges (Público)

Em entrevista à Renascença e jornal Público, Nuno Morais Sarmento, ex-vice-presidente do PSD com Rui Rio e antigo ministro-adjunto e da Presidência e dos Assuntos Parlamentares, vê com bons olhos a "Primavera" que o novo Governo trouxe a um "Outono requentado".

Em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do jornal Público, o social-democrata Nuno Morais Sarmento elogia o caminho de Pedro Nuno Santos, mas também lhe aponta incongruências. O ex-governante acredita que o PS estará sob forte pressão para aprovar o Orçamento do Estado (OE2025) e que caberá também ao Presidente da República garantir que o documento será viabilizado.

Para Morais Sarmento, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, “não tem que fazer mais nada” além de continuar “paciente e laboriosamente” a fazer o que tem feito. O ex-ministro social-democrata afasta comparações de Luís Montenegro a Cavaco Silva, a quem reconhece um “respeito e adesão” como nunca outro governante recolheu. Quanto ao caminho de António Costa até Bruxelas, o ex-governante aponta mérito a Durão Barroso e ao seu desempenho na Comissão Europeia.

Como ex-ministro da Presidência, considera que tem existido um esforço de negociação por parte deste PSD e do Governo com os restantes partidos?

Francamente, acho que sim. Podia fazer-se assim, podia fazer-se de outra maneira, com certeza. Dizer que não há, pelo menos, uma procura de negociação, acho que é negar a realidade. Depois podemos dizer que é mais bem feita ou mais mal feita, mais a tempo ou menos a tempo.

O PS acha que não. O PS também não tem tido a abordagem certa com esta maioria relativa?

O PS anda um bocadinho à procura. Pedro Nuno Santos anda à procura de saber se vai mais para uma postura de oposição, com vista a uma demissão do Governo ― a uma rutura próxima ― ou não. Se olharmos à fotografia do imediatamente antes das eleições legislativas, tínhamos era um país progressivamente cansado. Nem era [cansado] do PS, era do Governo. E [tínhamos] um Governo que começava a estar cansado de si próprio. Aqueles que não tinham problemas, começavam a achar demais estarem numa equipa de, não digo de doidos, mas de constantes problemas, muitas vezes, desnecessários. E aqueles que tinham problemas, começavam a querer não estar, como o próprio Pedro Nuno de Santos. Até António Costa. Muito o que o empurrou para aquela decisão [de demissão] foi essa sensação.

De frustração?

Olhe o que era Cavaco Silva ao fim de nove ou dez anos. Foi o tempo que António Costa esteve à frente do Governo. Era ele que ia dizer: “estão aqui os amanhãs que interessam e que podemos seguir”? Não era. Se nós olharmos para trás e tivermos esta fotografia, e agora olharmos ao dia de hoje, e saltarmos por cima da espuma de cada momento, no fundo, se resolveu isto. É evidente que não é uma estratégia coletiva dos portugueses, mas até isso é um resultado que encaixa nisto.

O primeiro-ministro andou em campanha eleitoral nestas europeias como acusou o PS?

Se o Governo não tivesse um calendário, como o que está a ter ― mesmo assim, em várias áreas, eu acho que está a ser lento demais ― não chegava sequer a outubro. Para que outubro seja um momento possível de manutenção do Governo, de racionalidade política, pelo centro. Ele tinha sempre de ter este ritmo. E o PS e todos os outros sabem perfeitamente isto.

Assinalou que os portugueses estavam muito cansados. Em abril dizia que os portugueses tinham uma vontade de uma grande mudança. O PS venceu as europeias. Ainda identifica essa vontade de mudança?

Se limpar as vírgulas todas, quem ganhou as eleições [legislativas] foi a AD. Acho que os portugueses têm uma atitude de desconfiança relativamente aos partidos todos, que os leva a não termos festas de mudança, para um lado ou para o outro.

O que é que acha que aconteceu das legislativas até às europeias? Foi Pedro Nuno Santos que se fortaleceu, através das medidas que o PS aprovou no Parlamento?

Acho que Pedro Nuno Santos tem genericamente feito o caminho certo. Há uns dias em que ele é a evidência da racionalidade política, da necessidade, em que procura não dar mais casas aos extremos ― ainda por cima é só o extremo de um lado que neste momento fatura ―, em que permite que a bem do funcionamento da democracia, o Governo possa ter um tempo mínimo para governar. E há outros dias em acorda de manhã e quer ser primeiro-ministro. Não há nenhuma linha vermelha. Mas uma coisa é dizer: “vou votar contra as propostas do Governo”, outra é dizer ao Governo: “vou brincar convosco e cada vez que vocês tiverem uma ideia não se preocupem que a gente vai fazer de forma diferente”.

Com que intenção é que Pedro Nuno Santos faz isso?
Porque sente que o PS quer as duas coisas. E depois ainda há aquele feitio dele, não é?

E vê no PS uma vontade de provocar eleições antecipadas?

Não. Mas ao querer ir para lá da oposição normal, não tendo maioria para governar, mas para governar no Parlamento, é irresponsável.

Embora Luís Montenegro tenha dito “não é não”, também é verdade que ouvimos constantemente a AD a dizer que está a negociar “com todos, todos, todos”.
E muito bem.

Negociar com todos é uma forma de não se comprometer com “ninguém, ninguém, ninguém”? E de se escudar no “boicote parlamentar” que impede a ação do Governo?

O raciocínio é válido. Se o Governo não negociasse com “todos, todos, todos” e negociasse com alguns, alguns, alguns, estamos a ver o carnaval que era.

Montenegro já disse que tem o PS como negociador preferível.
Tem o mesmo entendimento de que não é brincando às coligações com extremos que a coisa se resolve.

O líder parlamentar do PSD, Hugo Soares, mantém-se convicto que o PS vai viabilizar o Orçamento do Estado. Acredita que o “bom caminho” de Pedro Nuno Santos levará à viabilização?

Acho que ele tem feito bem no essencial. Mas também disse que ele às segundas, terças e quartas pensa uma coisa e às quintas, sextas e sábados dá-lhe para o outro lado. É binário, politicamente falando.

Resta saber em que dia é que Pedro Nuno Santos está quando decidir se vai viabilizar ou não o Orçamento?

Espero que isto não continue a ir de dias para um lado e dias para o outro. Acho que tenderá a ser progressivamente mais clara e mais consolidada a posição de cada um que está em jogo. O peso não é só do PS, é um bocadinho dos stakeholders da sociedade civil, na sua maioria. Se calhar a CGTP não faz acordos, mas até a UGT os vemos a fazer. E quais são os outros players políticos? Em primeiro lugar, o Presidente da República, que vai procurar que haja condições de governo para lá do OE. Tem que ser absolutamente igual ao comportamento que teve com António Costa, muitas vezes incompreendido. Depois do que foi a união de facto com o Governo, Marcelo, vai ter de fazer a mesma coisa. Fazer a mesma coisa é lutar para que o Orçamento passe. Não é um player indiferente para o país.

E se não for viabilizado? Um segundo OE?
Pode ser. Pode ser ir, por um tempo, por duodécimos.

Mas não a dissolução?

Estar a falar das alternativas é disparatado. É puxar por elas. É ou não responsabilidade do Parlamento a viabilização do próximo Orçamento? É evidente que é. O país espera, e será mais evidente até outubro, que o Orçamento seja aprovado e não que haja eleições.

O PS vai ser pressionado?

Se o PS não ler aquilo que o país quer dizer e aquilo que os stakeholders políticos e sociais dizem, quer dizer… Não é uma questão de ser pressionado. É uma questão de construir a sua decisão olhando àqueles que são os fatores relevantes em si.

A dissolução da Assembleia da República é uma ferramenta que tem sido usada pelo Presidente da República com prudência ou exagero?
Respondo-lhe para a frente, para não olhar para trás. Marcelo Rebelo de Sousa quer tudo menos a dissolução até ao fim do mandato. A única dissolução que acho que pode ser analisada do ponto de vista que ele podia fazer em outro momento honesto é esta última. Mas esta última aconteceu porque António Costa quis ir-se embora. Pode-se fazer as pinturas e as histórias que se quiser. Foi Costa que se demitiu. Marcelo Rebelo de Sousa, em cima disso, o que é que fazia? Dar posse a um Governo com Mário Centeno? Estamos a brincar?

Acho que tem corrido bem [ao novo Governo], com protagonistas novos. Parece que voltámos a acertar um bocadinho nas décadas certas para lideranças de Governo. Olho a António Leitão Amaro, olho ao ministro dos Assuntos Parlamentares e a mais alguns. Cometem erros, são impreparados em algumas coisas, são rookies noutras, mas estão a andar. E Luís Montenegro não tem sido rookie em nada. É engraçado. É engraçado recordar o que o professor Cavaco Silva andava a dizer.

Luís Montenegro tem sido comparado a Cavaco Silva. É uma comparação que lhe parece fazer sentido?

Não. Entre o professor Cavaco Silva e o doutor Luís Montenegro vai uma diferença, como do Poço do Borratém à Feira de Sevilha. São pessoas muito distintas. O professor Cavaco Silva teve uma capacidade de se afirmar, enfim, de ganhar o respeito e a adesão do país, como não vi mais ninguém desde então.

Acha possível que Luís Montenegro ganhe essa opinião pública que Cavaco Silva ganhou?

Está a fazê-lo da forma mais inteligente que podia ser: não falar muito, largar um bocado a política, falar do Governo, das iniciativas do Governo, bem ou mal, do que estão a fazer, do que querem fazer. Fazê-lo de uma forma não agressiva, de uma forma que não procura dividir, que procura somar.

Daqui até outubro, Luís Montenegro não tem de fazer mais nada do que continuar, paciente e laboriosamente a fazer o que tem feito até aqui. Acho que se respira mais Primavera com Montenegro. Andávamos um bocado em Outono requentado…

Este desempenho de Montenegro põe um tampão na crítica interna?

Luís Montenegro estava num calendário de 2026. E para um calendário desses, o caminho é outro. Não é acelerar tudo no primeiro dia e ficar sem gasolina no terceiro, quando tem sete à frente. Não pode criar uma sobre-exposição da pessoa que depois não se traduzirá em nada e represente uma espécie de flop do próprio avanço.

Trabalhou com Durão Barroso. Acha que a sua passagem pela Comissão Europeia trouxe benefícios tangíveis para Portugal? A escolha de Costa para a presidência do Conselho Europeu é comparável?
São coisas bem diferentes, apesar de tudo. O presidente da Comissão Europeia tem infinitamente mais intervenção na construção desse tempo do que tem o presidente do Conselho Europeu. O presidente do Conselho Europeu tem uma função muito mais diplomática, de agregador.

Portugal está para a Europa, se não como o mito da caverna, pelo menos como aquele que tem um monte pela frente e tem que chegar ao outro lado. Tem vários caminhos que arrancam deste lado do monte. E não faz a menor ideia de quais é que são os caminhos que do lado do monte vão dar certo. Nós vemos uma representação da Europa. Quero dizer com isto que o processo central da decisão europeia não espera por Portugal. Ter alguém que possa ir para o outro lado do monte e dizer: “o caminho é este”… Acho que é de uma, francamente, ignorância política que a questão se coloque. Durão Barroso não é nenhum Jacques Delors, mas é um dos melhores desempenhos [em Bruxelas]. O que significou? Portugal passou a existir.

Esta sobre-exposição do nome de António Costa como potencial candidato à presidência do Conselho Europeu pode fazer aquilo que Paulo Rangel diz muitas vezes: “quem entra Papa sai cardeal”?

Pode. Eu acho que António Costa não estaria a fazer o que está a fazer não fora a história da investigação, que não é investigação nenhuma. Se está a dar mau resultado acho que a responsabilidade é da António Costa. Costa sabia perfeitamente, é jurista como eu sou, que o envio para o Tribunal de Contas é um processo mecânico. Ele sabia que aquilo não era nenhuma averiguação, que ele não poderia ser constituído arguido, que aquilo não dava naquilo tudo que ele disse. Eu acho que ele jogou forte nesse momento para sair. E para distrair vossas excelências do essencial daquele processo, que é os maços de notas, o amigo não sei o quê. António Costa, como sempre, joga bem.

Naquele momento tirou o processo todo de cima dos outros, mas depois isso complicou-lhe um bocadinho a vida. Aquilo era só para aquele dia. Uma semana depois já estaria interessado em dizer a coisa mais suave por causa do horizonte europeu. Felizmente foi salvo, e bem. Não há nenhuma dúvida. Mas nunca houve. Ele próprio a criou, um bocadinho naquele contexto de missão do Governo, de saída. Ele queria sair naquele momento. Mas a seguir tem de furar o balão que ele próprio encheu. Ainda assim tem salpicos. Veja lá, ouvirmos um primeiro-ministro a dizer que quer saber o que o processo tem a dizer. Veja lá o que o resto da Europa pensará. Mas pronto, não há muito mais a dizer.