​"Brinkmanship"
23-02-2022 - 08:09

A guerra acabou anteontem; ou a guerra começou anteontem? Em rigor, só Vladimir Putin, que em muito parece um novo czar, tem a resposta para esta interrogação.

O conceito de “brinkmanship” pertence ao vocabulário da Guerra Fria. Pode traduzir-se por temeridade, braço-de-ferro, diplomacia arriscada ou “peribelicismo” (de quase-guerra). Trata-se de uma situação de conflito iminente, em que uma das partes força uma dada situação, ameaçadora e perigosa, num pré-anúncio de confronto e de desastre, de forma a alcançar uma posição de maior força ou um resultado vantajoso. Durante a Guerra Fria, mais do que uma vez o choque entre as duas superpotências nucleares (EUA e URSS) esteve quase a acontecer. A linha vermelha foi esticada ao limite; mas, na 25.ª hora, a guerra “quente” anunciada afinal arrefecia, porque o contendor mais ofensivo não arriscava o apocalipse. O exemplo máximo de “brinkmanship” foi a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, em outubro de 1962, que fez o mundo suspender a respiração, antes de a pressão norte-americana da administração Kennedy ter feito Kruschev retroceder.

Não é fácil classificar com rigor em que estádio está hoje a questão russo-ucraniana, que tem preocupado, com razão, o mundo nas últimas semanas, e que escalou na segunda-feira, com a declaração de Putin de reconhecimento da independência das repúblicas de Donetsk e Lugansk. Podemos assumir uma leitura pragmática e até otimista. O gesto de Putin passa a letra de lei uma situação “de facto” já existente, dado que desde 2014 são os separatistas pró-russos que na verdade mandavam, e mandam, sobre os dois “oblast” do leste ucraniano. Talvez, portanto, toda a escalada de militares russos na fronteira se destinasse apenas a alavancar esta medida diplomática, fazendo daquelas novas soberanias factos consumados, com ou sem escaramuças com os ucranianos. E o mundo poderá respirar de alívio (ao menos por agora), porque o Kremlin cometeu apenas o mal menor, porventura contentando-se em blindar as populações pró-russas da Ucrânia, como de resto já fez e faz com a Ossétia e a Abecásia em território georgiano. Num mundo de falcões realistas nas relações diplomáticas, o facto de Putin ter violado a legalidade internacional poderá até passar para segundo plano se, e só se, ele se portar diante da comunidade internacional como Hitler não se comportou diante do compromisso assumido em Munique.

Em sentido contrário, podemos assumir uma leitura catastrofista e pessimista. Lugansk e Donetsk passarão, a prazo, de repúblicas independentes a partes da “Mãe Rússia”; e depois destas, outras, isto se a temeridade do Kremlin não fizer simplesmente a loucura de marchar sobre Kiev para subjugar e engolir toda a Ucrânia. Ele não se atreverá a tanto, sugerem uns quantos “putinólogos” (uma disciplina em expansão). O problema é que ninguém pode saber isso. No seu discurso, sempre em tom sombrio e desalentado, Putin liquidou a história da URSS, declarando que a autonomia dada pelo Kremlin de então às repúblicas da Federação fora um erro. Ou seja: para lá de Estaline e de Lenine, colocou-se no horizonte do puro nacionalismo imperial, teorizando um “espaço vital” pan-eslavista à século XIX. Por isso a sua ambição não será a de exportar a revolução a povos “irmãos”, mas a de russificar, à maneira de Nicolau I ou de Alexandre III, toda a larga área, que preenchia os sonhos dos czares, das estepes asiáticas aos mares Cáspio, Negro, Egeu e Báltico. Putin nunca conseguiria tudo isso; mas qualquer tentativa parcial seria (será?) um apocalipse, para lá do Donbass e da Ucrânia, para lá do Nord Stream, da NATO ou da UE.

A guerra acabou anteontem; ou a guerra começou anteontem? Em rigor, só Vladimir Putin, que em muito parece um novo czar, tem a resposta para esta interrogação.