Somos os tais com filhos
02-11-2018 - 06:15

Hoje em dia, ser cool é casar e ter filhos; hoje em dia, ser radical é ser pai de família. Em 2018, estar no romantismo da periferia e ter o charme do contra, implica entrar no casamento.

Para quem dançou e ouviu tanto funaná, eu devia gostar de hip-hop. Mas não sou fã. Não é a minha frequência. Estou em FM e aquilo toca em AM. Contudo, sou grande seguidor deste Carlão mais velho que compreendeu algo que outros músicos desta geração, Fúria, Úria e Tiago Cavaco, também já tinham percebido: hoje em dia, ser cool é casar e ter filhos; hoje em dia, ser radical é ser pai de família.

Em 2018, estar no romantismo da periferia e ter o charme do contra, implica entrar no casamento. Ser “punk” ou “rapper” é cantar a batalha do casamento, como faz Carlão: “tenho filhas pa criar, não dá pa vacilar”. Sim, em 2018, um rapper iconoclasta não faz as habituais homenagens à vida da noite, da marginalidade, do bon vivant, do crime. Faz, isso sim, odes à vidinha do casamento: “ter uma vida séria como eu nunca pensei”.

Duas ou três músicas de Carlão são tratadas como salmos cá em casa; salmos sobre o casamento e tudo o que ele implica de renúncia e redenção. O caminho que vai da renúncia à redenção é aquilo que as pessoas normalmente apelidam de "amor". Começo por "Os Tais”. Esta faixa é honesta e reconhece que “às vezes não é fácil”. Carlão podia aqui ceder ao cinismo engraçadista que tem dois efeitos seguros: aceitação crítica e divórcio. Mas resiste. Logo a seguir, declara a sua esperança na ideia de que “damos sempre a volta”. Porque é que damos a volta? Primeiro, as pequenas coisas contam. Por exemplo, “é tão bom acordar de manhã, olhar para ti antes de ir bulir no que sempre curti”.

Segundo, as grandes coisas que nos abrem o campo de visão, que nos retiram do vórtice do presente: os filhos. No caso de Carlão, filhas. “Firmes e constantes”, “somos os tais que viraram pais”. Esta expressão “os tais”, que indica espanto, faz todo o sentido. Às vezes, quando vou na rua com as minhas filhas, as pessoas olham para mim como se eu fosse um alien, Olha, ali vai o tal que já tem duas filhas. Que loucura, meu Deus!

Gosto de "Os Tais", mas o meu salmo favorito é “Contigo”. Esta faixa aprofunda as duas premissas. Primeiro, as pequenas coisas que nos seguram aqui e agora: “e no final do dia partilho inseguranças, revelo segredos sem medo de cobranças”. Segundo, as esperanças no futuro e a certeza de que o casamento pede um tempo diferente daquele que nos é servido todos os dias pela sociedade apressada do like e da partilha.

O casamento exige que pensemos na escala das décadas, não na escala das horas, dias ou meses. O que são longos meses de tormento ao pé de uma vida inteira? Se "é tão perfeito dormir com quem se ama” e ainda é mais perfeito projectar esse amor no futuro: “Baby, Deus queira que a gente chegue a avós, Tipo Cocoon a curtir que nem uns putos”. Este futuro avoengo retira-nos do sufoco do presente, sobretudo quando as coisas não estão fáceis. Mas, mesmo aí, “é este o panorama e eu não mudava um miligrama“. A menina dança um funaná?