A prioridade das prioridades na resposta à tempestade em Valência, Espanha, é resgatar pessoas com vida e garantir rapidamente o fornecimento de água potável e de eletricidade, explica à Renascença o cirurgião Nelson Olim, professor de Medicina Humanitária em Conflitos e Catástrofes, da Universidade de Lisboa, que participou no socorro às populações afetadas pelo tsunami de 2004, na Indonésia.
Na catástrofe de Valência, o número de mortos confirmados foi ampliado ao início da tarde desta sexta-feira para 158, e há um número de desaparecidos ainda incerto, fazendo temer o pior, tendo em conta o cenário de devastação provocado pelas inundações.
Quais serão as prioridades, neste momento, das autoridades espanholas na resposta à catástrofe de Valência? Enquanto cirurgião, já trabalhou em muitos cenários de catástrofe, sobretudo em países do terceiro mundo. E num país desenvolvido, como Espanha, o que se estará a passar?
Tentar encontrar pessoas ainda com vida, que necessitam de ser resgatados. Esta é claramente a prioridade número um. Diria que a prioridade número dois tem a ver com as questões que estão ligadas à saúde pública. Habitualmente, neste tipo de situações há a contaminação dos aquíferos e, portanto, a água que está nas torneiras não é potável. Isto quer dizer que, enquanto prioridade de resposta, passa por obviamente garantir que as populações têm acesso a água potável. A terceira grande prioridade tem a ver com as infraestruturas, desbloquear vias de acesso para que se possa circular e eventualmente restaurar a eletricidade.
Esta quinta-feira, foram confirmados mais de 150 mortos. Devemos contar que este número venha a ser bastante ampliado?
É difícil de dizer. Nestas circunstâncias, aquilo que nós sabemos é que, habitualmente, a maior parte daqueles que são dados como desaparecidos, uma grande maioria acaba, depois, por se juntar à estatística dos mortos. Isso acontece nos terramotos, nos tsunamis, nas cheias. É quase uma regra básica.
Quanto a feridos, ao contrário daquilo que acontece nos terramotos, por exemplo - onde nós, para cada morto temos mais ou menos três feridos - nas cheias temos exatamente o inverso: Temos um ferido para cada três mortos, ou um ferido para cada quatro ou cinco mortos. Varia obviamente, dependendo das circunstâncias, mas estamos a falar de um rácio completamente diferente.
Ou seja, se acabarmos em Espanha com cerca de 200 mortos, provavelmente, não devemos esperar que existam mais de 50 feridos. Não me parece que, neste caso de Espanha, em particular vá haver uma sobrecarga por aí além dos serviços de saúde, porque provavelmente o número de feridos é relativamente baixo.
Neste mundo desenvolvido, como é que as pessoas vivem e sentem este tipo de catástrofe?
O efeito psicológico é completamente diferente quando uma catástrofe destas acontece, eu diria, no primeiro mundo ou acontece em países subdesenvolvidos. Isto porque nós temos uma dependência enorme, por exemplo, da água que nos corre na torneira. Se amanhã formos abrir a torneira, e não houver água, duvido que muitas pessoas saibam onde é que podem ir buscar água potável. Ou seja, a disrupção deste tipo de catástrofe nos países desenvolvidos acaba por ser muito superior àquilo que acontece em locais onde as pessoas já estão habituadas a que a água venha através de um camião-cisterna, que as vai abastecer... e que a eletricidade chegue através de um gerador.
Portanto, eu diria que as grandes prioridades, neste momento, das pessoas são encontrar abrigo, do ponto de vista da saúde pública é o acesso à água potável... Portanto, o risco de situações de cólera ou de um aumento das hepatites, habitualmente acontecem neste tipo de situações, se as pessoas não tiverem imediatamente acesso a água potável.
No caso da tragédia em em Valência, existe o risco de existirem casos de cólera ou de hepatite?
É um risco relativo porque estamos a falar de um país que tem uma capacidade de resposta muito grande. E, portanto, as pessoas já estão provavelmente a receber água potável, estão a receber alimentos. Eu diria que o risco é muito menor, mas é um risco real.