D. Rui Valério: o pároco-patriarca
06-09-2023 - 07:00

D. Rui Manuel Sousa Valério tornou-se, pela recente investidura pastoral, o 45.º Bispo e 18.º Patriarca de Lisboa.

Como acontece com a maioria dos nomes mais importantes da Igreja portuguesa, já era conhecido (e estimado) entre os seus, mas desconhecido do grande público. A caminho dos 59 anos de idade, é um teólogo desinstalado.

Natural da Urqueira, em Ourém, formou-se na espiritualidade missionária do Seminário dos Monfortinos, em Fátima. Estudou filosofia e teologia em Roma e espiritualidade missionária na Bélgica. Mas à densidade teórica que possui preferiu sempre o trabalho prático, o carisma simples das pequenas-grandes obras. Foi Capelão Militar no Hospital da Marinha e era, até agora, Bispo da Diocese (extraterritorial) das Forças Armadas e Segurança (o primeiro Monfortino feito bispo, em 2018). Antes, distinguira-se sobretudo como pároco em Castro Verde, onde se fez alentejano, tornando o cante local um cântico religioso, e na “paróquia-dormitório” da Póvoa de Santo Adrião, às portas de Lisboa, onde levou a cabo um notável trabalho social, de assistência e integração de muitas comunidades pobres e marginalizadas.

Mesmo feito Bispo das FA – já depois de o Papa Francisco o ter nomeado “Missionário da Misericórdia” – continuou a morar na modesta casa da Póvoa, como um pároco desinstalado, deslocado em missão espiritual e humanitária junto dos mais carenciados.

O novo Patriarca de Lisboa presidirá agora a uma imensa diocese e será olhado como o líder ‘de facto’ da Igreja portuguesa. Tem dois desafios imediatos e um desafio sistémico. O primeiro daqueles será capitalizar a energia de comunhão e de missão jovem despertada pela recente JMJ, no reforço de uma Igreja que (palavras suas) “corre apressadamente para a humanidade”. O segundo, menos alegre, continuará a ser a questão dos abusos sexuais de menores, que tanto amargou os últimos tempos do seu antecessor.

Sempre defensor de uma investigação independente a esses casos, as suas primeiras declarações foram alentadoras: quer “prosseguir, com esperança, no caminho da cura total do vosso e nosso sofrimento, da tolerância zero”; o “vosso” antes do “nosso”, porque a Igreja precisa de uma “conversão para com as vítimas” (que devem estar “no centro”), e de agir “a partir da centralidade das vítimas”.

Recordando a história, o desafio sistémico será talvez menor do que os de D. Manuel Gonçalves Cerejeira, que teve de reconstruir a Igreja portuguesa depois do laicismo sectário da I República, ou de D. António Ribeiro, que teve de a reposicionar na relação com a democracia pós-Estado Novo. Mas é maior do que os de D. José Policarpo, em 1998, ou de D. Manuel Clemente, em 2013. Estes últimos foram patriarcas já de um tempo que agora, em 2023, aparece com traços mais reforçados – citando de novo D. Rui Valério, o de um mundo mais “fora de Deus”, “profano, secular e laico”, e também “científico e técnico, mais utilitário, hipersensual, violento, afrodisíaco”.

O novo Patriarca já identificou o mal que grassa fora e dentro do seu redil: uma “espiritualidade ‘buffet’ com fé ‘self-service’, em que se tenta dispensar os intermediários e se colhem das várias propostas fragmentos de conveniência”.

Na esteira do Pentecostes que foi a JMJ, D. Rui Valério será um Bispo-Patriarca de proximidade porque na sua alma está o pároco ágil de sempre. Já declarou querer ser “um bispo da rua”, “da estrada”, “de presença” junto das pessoas. Será adepto da sinodalidade e do dinamismo do laicado. A história registá-lo-á com o título de “D. Rui I”; mas a pompa e o clericalismo da cúria diocesana serão dimensões estranhas ao antigo pároco da ruralidade alentejana e da problemática periferia lisboeta.