Campos e Cunha: "Acabámos de sair dos cuidados intensivos, mas ainda estamos hospitalizados"
25-05-2017 - 00:00
 • Graça Franco [Renascença] e Vítor Costa [Público]

Em entrevista à Renascença e ao "Público", o antigo ministro das Finanças destaca que Portugal está a bater recordes quando se olha para os indicadores de actividade e expectativa económica. Mas também deixa avisos: espera que o "optimismo não seja nenhuma exuberância irracional” e “não se pense que o problema orçamental está resolvido”.

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O economista Luís Campos e Cunha não se mostra surpreendido com a evolução registada pela economia portuguesa. Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do Público, diz mesmo que esta está “numa situação bastante saudável” e que “os resultados não têm sido nada maus”.

Campos e Cunha que foi, durante escassos meses, ministro das Finanças no primeiro Governo de José Sócrates, diz que, depois de um período inicial de desconfiança em relação ao Governo liderado por António Costa, a retoma veio e veio com um bom perfil. Para o professor universitário, continuam, no entanto, a existir riscos, essencialmente externos, mas adverte que o Governo ainda está a tempo de “fazer asneiras”.

Em finais de 2016 estava convencido que o Governo poderia ter a tentação de reverter tudo o que tinha sido feito pelo executivo anterior. Surpreendeu-o que não tenha sido tanto assim ou pensa que se cumpriu a sua previsão?

Penso que para toda a gente esta "geringonça", chamemos-lhe assim, tem tido um comportamento que surpreendeu em muitos aspectos. Houve um conjunto de medidas que tinham de ser revertidas, a questão era saber se era num ano, em dois, três ou quatro. Este Governo tomou uma decisão de as fazer mais rapidamente e os resultados não têm sido nada maus, genericamente falando. E, apesar de tudo, não fez alterações muito significativas, pelo menos que me tenha apercebido, em sectores em que houve alguma liberalização da economia, nomeadamente nas leis de trabalho.

Também disse que era um risco apostar no consumo como motor da economia. Vimos que numa primeira fase isso aconteceu, o consumo acelerou, mas depois abrandou e, agora, o motor já são as exportações e o investimento. Acertámos o passo?Julgo que sim. O perfil de saída de uma crise deve começar sempre pelas exportações, depois o investimento e depois o consumo privado. Tentar inverter este processo é perigoso. Inicialmente o que se dizia era que a economia seria puxada pelo consumo privado, isso não aconteceu, o que também significa que as famílias aprenderam com a crise, no sentido de que devem ter uma taxa de poupança um pouco mais elevada. Por outro lado, estamos a ver que as exportações, para surpresa de muitos, não para mim, continuam a portar-se muito bem. E não é só por via do turismo, mas também pela exportação de bens. E agora estamos numa retoma do investimento que parece clara.

É uma retoma sustentada? No início de 2016 a economia desacelerou depois de se ter acelerado. Estamos mesmo perante um novo ciclo?
Presumo que a desaceleração do início de 2016 terá sido muito motivada pela surpresa do tipo de arranjo governamental que houve. As pessoas ficaram à espera para ver o que acontecia. Isso, julgo que passou. Havia também a ameaça como a reintrodução do imposto sobre sucessões e doações, um problema que pairava no espírito de muitos. Julgo que isso está ultrapassado e, portanto, essa retoma veio e é uma retoma que tem um bom perfil. É evidente que a sustentabilidade dessa retoma não depende só de nós. Depende do Governo, que ainda está a tempo de fazer asneiras. E depende da conjuntura internacional. Há uma série de factores que estão muito para além do nosso controlo e que podem vir a dar más notícias e ter consequências negativas, mas naquilo que depende de nós, até agora, estamos numa situação bastante saudável.

Se olharmos para os indicadores, tanto de actividade económica como de expectativas, a verdade é que em Fevereiro e Março estamos a bater todos os recordes. Nalguns casos estamos acima já das expectativas que havia na altura do lançamento do euro e nessa altura estávamos a crescer 4% e 5%. Presumo que esse optimismo vai levar a mais investimento e a maior actividade económica. Espero que esse optimismo não seja nenhuma exuberância irracional.

E se for?
Poderemos ter uma desilusão mais tarde e isso também tem implicações económicas de sentido contrário, de uma inversão das expectativas. Há um outro factor que é importante. Nos últimos anos, uma boa parte da nomenklatura instalada a nível económico, e em certo sentido político, mas certamente ao nível económico, desapareceu. E isso é bom porque dá oportunidades a outros grupos económicos, a outros investidores.

Acha mesmo que vai aparecer essa nova elite?
Vai aparecer. Isso é o horror ao vácuo. Vai com certeza aparecer.

Mas já está a acontecer?
Nós não sabemos é quais são, mas, certamente está a acontecer e vai acontecer. E isso é bom para o desenvolvimento do país. Haver uma nomenklatura instalada é uma condição para a esclerose da economia e o desempenho económico do país. Basta ver a liderança das grandes empresas, é rara a grande empresa que tem a mesma liderança hoje que tinha há dez anos.

Costuma referir as dificuldades que o nosso sistema de Justiça provoca para a atracção de investimento. Ainda é assim?
Não sou especialista. Mas se para resolver um problema, uma disputa económica, se demoram anos, evidentemente, isto tende a afugentar os bons investidores e tende a atrair os maus investidores, aqueles que gostam de viver num sistema jurídico que não funciona. E portanto, há aqui um problema a que os economistas chamam "selecção adversa", ou seja, afugentamos os bons e atraímos os maus. Julgo que houve algumas reformas no sistema de Justiça, mas provavelmente ainda há muita coisa para fazer e não é só no sistema de Justiça, não é só os tribunais.

O que falta mais?
É também na feitura das leis. Uma lei, em princípio, devia ser algo que uma pessoa educada, sem ser jurista, fosse capaz de ler e perceber. Nenhum de nós... Eu pelo menos não me atrevo a ler lei nenhuma sem ter um advogado ao lado para me explicar, para trocar por miúdos. Por outro lado, muitas vezes as leis são todas pensadas para que o conflito seja resolvido em tribunal, ou seja, empurra tipicamente as partes para tribunal, em vez de incentivar o consenso, sem os problemas serem resolvidos em tribunal.

Que significado tem a proposta de saída de Portugal do procedimento por défice excessivo (PDE)?

É muito importante para o país. Mas é apenas o primeiro passo. Tivemos 10%, 11% de défice e era totalmente necessário estabilizar do ponto de vista orçamental. Isso aconteceu e, portanto, como corolário disso saímos do PDE. Agora, não se pense que o problema orçamental está resolvido. O problema orçamental está, digamos, estabilizado. Acabámos de sair dos cuidados intensivos, mas ainda estamos hospitalizados, o que significa que não vamos correr a maratona.

Também sou funcionário público, mas não podemos, como se fez no passado, aumentar desmesuradamente os funcionários públicos, não podemos pensar que podemos fazer o TGV e coisas desse género. Isso acabou, não pode voltar a acontecer. Não pode ser com cortes não pensados de impostos como houve. Tudo isso foi um erro crasso que viemos a pagar muito caro. Teve consequências para os portugueses, com a taxa de desemprego a subir para 17%, coisa nunca vista nas estatísticas portuguesas e que, provavelmente, atravessámos em consequência desse desmando orçamental de 2007 até 2011. Provavelmente, tivemos o período mais grave da economia portuguesa desde a fundação da nacionalidade.

Se o erro se repetisse, se Portugal, passado um ano ou dois, não cumprisse as regras, o que acha que poderia acontecer?
O que se passou no passado repetir-se-ia a provavelmente, se houvesse desmandos orçamentais. Estou convencido que não vai haver, pelo menos essa expectativa, e as declarações do primeiro-ministro vão nesse sentido. Segundo, as nossas regras continuam a ser muito duras e muito e difíceis e é importante que o Programa de Estabilidade e Crescimento seja cumprido. Temos de diminuir a dívida pública, que está em níveis muito elevados, mas sustentáveis, assim a queiramos pagar.

Com um crescimento acima do esperado e com a saída do PDE ganhamos uma folga. O que devemos fazer com ela?
Não acho que haja grande folga orçamental. Pura e simplesmente continuamos hospitalizados e saímos de cuidados intensivos. Temos de pensar que temos de diminuir a dívida, as próprias regras do Pacto de Estabilidade implicam que do ponto de vista estrutural o défice tem de cair 0,6% e, portanto, continuamos a ter a um escrutínio importante e a ter de ter muito cuidado do ponto de vista orçamental como tivemos nos últimos anos. Mas não devemos ter este tipo de comportamento por causa do Pacto de Estabilidade.

Se não estivéssemos no euro e não estivéssemos sujeitos ao Pacto de Estabilidade, provavelmente o mecanismo de funcionamento dos mercados impor-nos-ia regras muito mais complicadas, não escritas mas provavelmente muito mais difíceis de cumprir. Portanto, não é por imposição do Pacto de Estabilidade, temos de ter uma política orçamental com parcimónia como, aliás, todos os portugueses têm lá em casa.

Mas que tipo de consequências? O que nos poderia acontecer?
Por exemplo, quando se fala muito e se argumenta que o investimento público caiu e que em boa parte a consolidação orçamental de 2016 se deveu à sua redução. Isso é verdade. Agora, tirando os comentadores e os políticos da Assembleia da República, alguém deu pela falta desse investimento público? A economia cresceu e até cresceu mais do que o esperado. E porquê? Porque já temos um equipamento social de excelente qualidade. Provavelmente são necessários novos investimentos vultuosos, na ferrovia, e não estou a falar do TGV, nos transportes públicos, mas tudo isso é acomodável. O que não é acomodável é desmandos e investimento por investimento que foi o que aconteceu nos últimos anos e em que o investimento público não teve, depois, repercussão nenhuma em termos de crescimento e em temos de bem-estar para os portugueses. Ninguém está a dizer que é investimento zero. Estou apenas a dizer que os níveis de investimento que tivemos no passado não são necessários neste momento.

O ministro das Finanças enviou a Bruxelas uma carta em que anunciava as medidas a tomar para tornar consistentes os números que estão no Programa de Estabilidade e Crescimento. Que medidas deveriam constar essa carta?
A estabilidade dos impostos é crucial para o desenvolvimento económico. A vida é por si incerta, o futuro é por natureza incerto, e se, além disso, o Governo estiver a mudar os impostos todos os dias, a única coisa que está a criar é mais incerteza e esse tipo de incerteza deve ser evitada, portanto, evitaria mexer em impostos. Não quer dizer que não possa haver um ajustamento aqui ou acolá, mas em geral era bom que houvesse estabilidade do quadro fiscal. Depois, o quadro das leis laborais devia também ser estabilizado e, portanto, assumir que não é para ser alterado num sentido ou no outro. Diria que, do ponto de vista de despesa, devíamos prosseguir de uma forma muito forte a reestruturação da administração pública. A administração pública tem sectores de excelência que trabalham muito bem, com pessoas muito capazes, e também temos o velho Estado, também temos zonas de funcionamento de alguns ministérios ou de alguns departamentos dentro de ministérios que estão muito atrasados do ponto de vista de organização e de eficiência. E, portanto, aí tínhamos um Estado a ser mais eficaz, mas, além disso, quando se é mais eficaz, também se poupam recursos.