Lei da eutanásia coloca em causa inviolabilidade da vida humana
16-03-2021 - 01:22
 • Eunice Lourenço

Decisão do Tribunal Constitucional não põe em causa a legalização da morte assistida e permite aos deputados alterar o diploma.

O Tribunal Constitucional anunciou esta segunda-feira a sua decisão sobre o pedido de fiscalização preventiva da lei que legaliza a eutanásia, declarando inconstitucionais vários artigos do diploma aprovado em janeiro no Parlamento. Contudo, os juízes não deram por inteiro razão ao pedido do Presidente da República e deixam a porta bem aberta para uma solução

A eutanásia é inconstitucional?

Não é isso que o Tribunal diz. Antes pelo contrário. Embora não fosse pedido aos juízes que se pronunciassem sobre o conceito da eutanásia, mas sobre a sua resolução em concreto, os juízes acabam por, no mesmo acórdão em que dão razão parcial ao Presidente, dizer que o conceito de eutanásia por si não viola a lei fundamental.

O pedido de fiscalização preventiva enviado pelo Presidente deixava claro que o objeto do seu requerimento não era “a questão de saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a Constituição”, mas sim a concreta regulação da eutanásia. Contudo, o Tribunal acaba por se pronunciar sobre o conceito, considerando que não viola o artigo que garante o direito à vida.

“Considerou o Tribunal que o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias. Na verdade, a conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico, que é aquela que a Constituição da República Portuguesa acolhe, legitima que a tensão entre o dever de proteção da vida e o respeito da autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento possa ser resolvida por via de opções político legislativas feitas pelos representantes do povo democraticamente eleitos como a da antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa”, lê-se no comunicado divulgado esta segunda-feira.

Então o que é que o Tribunal considerou inconstitucional?

O que os juízes dizem é que a lei tem de ser mais clara. O que a legalização da eutanásia implica é que “as condições em que a antecipação da morte medicamente assistida é admissível têm de ser claras, precisas, antecipáveis e controláveis”. Ou seja, a formulação desta lei em concreto, da lei aprovada em janeiro no Parlamento, é que tem problemas de constitucionalidade.

Então dá razão ao Presidente, que tinha pedido que verificassem artigos em concreto?

Sim, dá razão, mas só em parte. De acordo com a decisão divulgada esta segunda-feira, o Tribunal considera que é preciso definir melhor o conceito de “lesão definitiva” incluída na lei como condição para a prática da eutanásia.

Já quanto ao outro conceito que o Presidente tinha pedido para ser verificado por considerar indefinido – o de “sofrimento intolerável” –, os juízes consideram que pode manter-se.

“O Tribunal entendeu que o conceito de “sofrimento intolerável”, sendo embora indeterminado, é determinável de acordo com as regras próprias da profissão médica, pelo que não pode considerar-se excessivamente indeterminado e, nessa medida, incompatível com qualquer norma constitucional”, leu o presidente do TC, Pedro Caupers.

Já quanto ao conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”, o Tribunal considera que “pela sua imprecisão (…) delimitar, com o indispensável rigor, as situações da vida em que pode ser aplicado”.

E agora o que acontece à lei?

A lei já foi vetada por inconstitucionalidade pelo Presidente e devolvida ao Parlamento. E os partidos que a aprovaram já anunciaram que vão apresentar alterações de forma a garantir a constitucionalidade.

E o que precisam de fazer?

Têm de arranjar uma definição de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico” que seja mais clara. Por exemplo, o Presidente manifesta o seu entendimento de que a eutanásia só deve ser permitida em caso de doença fatal. O PCP, que votou contra a legalização da eutanásia, já avisou que pode será difícil encontrar uma formulação mais determinista, mas Bloco, PS, PAN, PEV e Iniciativa Liberal estão confiantes de que é possível alterar a lei de forma a não ter objeções constitucionais.

Se ou quando a nova lei for aprovada no Parlamento, o Presidente tem de promulgar?

Não. O Presidente pode voltar a mandar para o Tribunal Constitucional ou pode usar o veto político.

E há outras formas de impedir a lei de entrar em vigor?

Não. Só a fiscalização preventiva e a declaração de inconstitucionalidade podem impedir. Mas, mesmo que entre em vigor, um décimo dos deputados (23) pode pedir uma fiscalização sucessiva da constitucionalidade com outros argumentos, como diz o professor Jorge Pereira da Silva. Foi o que aconteceu com as normas sobre maternidade de substituição, que foram alvo de fiscalização sucessiva a pedido de deputados do PSD e do CDS, já depois de o Presidente ter promulgado a lei e ter entrando em vigor. As normas, contudo, foram consideradas inconstitucionais em 2018 e até hoje os deputados não conseguiram encontrar uma formulação que garanta, ao mesmo tempo, os direitos da criança e da gestante que satisfaça as exigências de constitucionalidade.

A decisão do Tribunal foi consensual?

Não. Os juízes estiveram muito divididos. O acórdão do Tribunal Constitucional foi aprovado por uma maioria de sete juízes a favor. Cinco juízes votaram vencidos. A divisão entre os juízes ficou patente na discussão e votação do primeiro memorando – um documento que serve para uma discussão inicial e para aferir a sensibilidade dos juízes. Depois dessa discussão e tendo em conta que o redator do memorando tinha um entendimento que não era consensual procedeu-se à mudança de relator para que o projeto de acórdão já refletisse a posição da maioria. O relator final acabou por ser Pedro Machete, que é também vice-presidente do TC.

Nas declarações de voto, incluídas no fim do acórdão já publicado no site do TC, percebe-se que, mesmo entre os que votaram a favor, nem todos pensam da mesma forma. Quatro juízes que votaram a favor do acórdão defendem que o conceito de eutanásia é inconstitucional e não é possível uma maioria parlamentar legalizar a sua prática; outros quatro juízes, que votaram vencidos, consideram que o TC não se devia ter pronunciado sobre o conceito e que foi além do que lhe foi pedido. E um desses juízes faz ainda uma declaração de voto individual em que defende que o Tribunal se devia ter pronunciado pela não inconstitucionalidade.