Tribunal Constitucional volta a chumbar eutanásia
30-01-2023 - 18:00
 • Ricardo Vieira e Carla Caixinha

Os juízes consideram que "foi criada uma intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação da nova lei”. Presidente da República já devolveu o diploma ao Parlamento.

“Inconstitucional”. O Tribunal Constitucional (TC) voltou esta segunda-feira a chumbar a legislação que despenaliza a morte medicamente assistida, após o pedido de fiscalização preventiva feito pelo Presidente da República sobre o diploma da eutanásia.

A decisão foi tomada por maioria, de sete juízes contra seis. Esta é a segunda vez que o Tribunal Constitucional chumba um decreto sobre o tema da morte medicamente assistida.

São várias as normas da legislação da eutanásia aprovada no Parlamento que suscitaram dúvidas e reservas aos juízes do Tribunal Constitucional.

“O legislador, tendo embora desenvolvido esforços no sentido da densificação e clarificação de alguns conceitos utilizados na versão anteriormente fiscalizada, optou por ir mais além alterando em aspetos essenciais o projeto anterior. Ao fazê-lo, a Assembleia da República limitou-se a exercer as competências que a Constituição lhe atribui. Todavia, tal opção teve consequências, pois implicou que o Tribunal, chamado a pronunciar-se e aplicando a Lei Fundamental, houvesse de proceder a uma nova fiscalização, incidindo sobre as normas alteradas que foram objeto do pedido do Presidente da República”, começou por declarar o presidente do TC, João Causpers.

Os juízes do Tribunal Constitucional consideram que a nova lei da eutanásia não esclarece a definição de sofrimento para que uma pessoa possa ter acesso à morte medicamente assistida.

"Ao proceder a tal fiscalização, o Tribunal conclui que tendo o legislador decidido caracterizar a tipologia de sofrimento através da enumeração de três características (‘físico, psicológico e social') ligados pela conjunção ‘e’, são plausíveis e sustentáveis duas interpretações antagónicas deste pressuposto. Assim fazendo, o legislador fez nascer a dúvida, que lhe cabe clarificar, sobre se a exigência é cumulativa (sofrimento físico, mais sofrimento psicológico, mais sofrimento espiritual) ou alternativa (tanto o sofrimento físico, como o psicológico, como o espiritual)", afirmou João Causpers.

“Ou seja: o segmento de análise (‘sofrimento físico, psicológico e espiritual’) consente que dele se extraiam legitimamente alternativas interpretativas possíveis e plausíveis que conduzem a resultados práticos antagónicos: i) reservar o acesso à morte medicamente assistida apenas a pessoas que, em virtude de lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, relatem um sofrimento de grande intensidade que corresponda cumulativamente às tipologias de sofrimento físico, psicológico e espiritual; ou ii) garantir o acesso à morte medicamente assistida a todas as pessoas que, em consequência de uma das mencionadas situações clínicas, sofram intensamente, seja qual for a tipologia do sofrimento”, afirmou o juiz presidente do TC.

"Foi criada, desta forma, uma intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação da nova lei

No anúncio da decisão dos juízes do Palácio Ratton, João Causpers deu um exemplo concreto das dúvidas que o novo diploma suscitou.

“Em termos práticos, e a título meramente exemplificativo está em causa saber se um doente a quem tenha sido diagnosticado um cancro com um prognóstico de esperança de vida muito limitada, ou um doente que padeça de esclerose lateral amiotrófica que não tenham sofrimento físico (vulgarmente entendido como dor) têm ou não acesso à morte medicamente assistida não punível."

Os juízes consideram que "foi criada, desta forma, uma intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação da nova lei”.

O Tribunal considera, ainda, "que o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias e que as condições em que é legalmente admissível a morte medicamente assistida têm de ser ‘claras, antecipáveis e controláveis’”, como refere o acórdão de 2021, “cabendo ao legislador defini-las de modo seguro para todos os intervenientes”.

Lei aqui, na íntegra, o acórdão com a decisão do Tribunal Constitucional.

De acordo com a Lei Fundamental, como o TC se pronunciou contra o decreto da eutanásia, este deverá “ser vetado pelo Presidente da República” e “devolvido ao órgão que o tiver aprovado”. Marcelo Rebelo de Sousa já devolveu o diploma ao Parlamento.

A Constituição da República estabelece que o TC “deve pronunciar-se no prazo de 25 dias” nos casos de fiscalização preventiva da constitucionalidade e o decreto da Assembleia da República foi enviado por Marcelo Rebelo de Sousa a este tribunal no dia 4 de janeiro, o que faz com que o prazo tenha terminado no domingo.

O chefe de Estado justificou o envio recordando que "em 2021 o Tribunal Constitucional formulou, de modo muito expressivo, exigências ao apreciar o diploma sobre a morte medicamente assistida - que considerou inconstitucional - e que o texto desse diploma foi substancialmente alterado pela Assembleia da República”.

Após uma declaração de inconstitucionalidade e um veto político, o Parlamento voltou a aprovar a despenalização da eutanásia a 9 de dezembro de 2022, perante críticas de vários setores.

O novo diploma deixou cair a exigência de "doença fatal" e alargou o âmbito da morte medicamente assistida. Estabelecia que a “morte medicamente assistida não punível” ocorre “por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”.

Os bispos portugueses consideram o aval do Parlamento "uma mensagem perigosa do Estado” a quem se encontra em “situação de desespero” e pode “desistir de viver”.

Este é o mais recente capítulo num debate que se prolonga em Portugal há quase três décadas. O processo legislativo já foi aprovado e chumbado várias vezes e, por duas vezes, um diploma chegou à secretária de Marcelo Rebelo de Sousa, mas voltou para trás.