Enfrentando o apocalipse com os sapatos de Santiago
10-12-2020 - 06:30
 • Tiha K. Gudac*

Primeiro veio a Covid, depois o meteorito, depois o tremor de terra, depois a neve e finalmente uma nuvem de poluição tóxica. Não espanta que os croatas estivessem já a brincar com a ideia da chegada iminente do Godzilla.

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Há décadas que eu gozava com o início do Apocalipse, desde os dias da escola, dizendo que esperava que viesse a tempo de me safar dos exames de matemática, e coisas assim.

A 28 de Fevereiro de 2020 começámos a ouvir falar dos primeiros casos de Covid na Croácia, no mesmo dia em que rebentou um meteorito por cima de Zagreb. Dois dias mais tarde estava num avião a caminho de Bruxelas – que na altura não tinha casos – na esperança de que o avião não seria atingido por outro meteorito e feliz por poder começar um novo trabalho no estrangeiro, sem grandes planos para passar tempo na Croácia nos meses seguintes.

Mas como todas as boas anedotas têm um elemento de surpresa, assim foi com as minhas piadas apocalípticas, e no final o universo ficou a rir-se de mim. Menos de duas semanas depois de chegar à Bélgica, estava entre uma multidão de viajantes em pânico a tentar comprar os poucos bilhetes que ainda havia para regressar a casa por os seus projetos terem sido cancelados com a declaração da pandemia pela Organização Mundial da Saúde. Os números de casos positivos estavam a subir na Bélgica nessa altura e não havia ainda medidas restritivas.

Mal aterrei o cenário foi outro, bem diferente. Por ter vindo de uma “zona de perigo” fui imediatamente colocada em quarentena durante duas semanas. As ruas de Zagreb continuavam cheias de vida enquanto eu permanecia fechada no meu estúdio solitário. Fui a primeira de todos os meus amigos e família a ficar de quarentena e tive imensa gente a oferecer-se para me trazer compras e a interessar-se pelo meu bem-estar.

O momento do dia para a maioria da nação tornou-se as conferências de imprensa diárias da “Defesa Civil”, uma instituição muito conhecida na altura da guerra nos anos 90 e que agora voltou a aparecer.

Às 14h, de forma quase religiosa, ligávamo-nos todos para ouvir detalhes sobre os números de novos infetados e mortos e para nos preocuparmos com o que iria acontecer a seguir. Acho que a própria recuperação da “Defesa Civil”, enquanto instituição, recordou as pessoas de uma realidade básica nesta parte da Europa – que há sempre uma crise ao virar da esquina. Até podemos ter algum tempo de descanso, mas ela há de voltar e teremos de reagir com disciplina absoluta. E foi isso que fizemos, em breve foi declarado um confinamento total, abastecem-nos de bens essenciais e ficámos obedientemente em casa.

No início estava a levar a minha quarentena privada de ânimo leve: “Então foi para isto que me estive a preparar, vivendo sozinha e trabalhando a partir de casa durante anos. Qual é o problema? Não há!”. Mas os dias cheios de más notícias e a falta de contacto humano tiveram as suas consequências. Sem varanda, o que mais me fez falta foi o ar fresco. As famílias do meu prédio que têm filhos fizeram as malas e saíram da cidade. O pátio tornou-se estranhamente silencioso, mas ao menos deixei de ser uma ameaça e podia arriscar meter o nariz fora da porta.

Eu tinha feito o Caminho de Santiago mesmo antes do inverno e quando voltei a casa depois da caminhada de 37 dias deixei os sapatos que tinha usado de lado. Surpreendentemente, senti a necessidade de os calçar outra vez quando saí do meu pequeno apartamento e fui até às traseiras do prédio pela primeira vez. Fui até ao jardim e deitei-me no chão. Acho que nunca tinha sentido tão profundamente a força da natureza como dessa vez, prostrada sobre a terra, sentindo o vento e o calor do Sol. Esse momento de ar livre foi suficiente para mim e olhando para os meus sapatos pensei “tudo bem, podemos não saber o que está ao virar da esquina, mas de alguma forma faremos esta caminhada também.”

Na manhã seguinte acordei antes das 6h com uma mensagem escrita da minha mãe. Ela achou que era a hora apropriada para me enviar um artigo com o título “Sinais do Apocalipse”.

“É doida”, pensei eu, enquanto me sentava na cama, a segurar no telefone. Naquele instante a terra ganhou vida e um barulho intenso emergiu do seu núcleo. Sentia que o prédio estava a ser rasgado ao meio. “Tremor de terra! Aquele potente que estamos sempre à espera que atinja Zagreb”, pensei.

Numa questão de segundos cheguei à rua. Lá estava eu, quase nua e descalça no pátio, com o edifício a tremer e a olhar para o lusco-fusco, sem conseguir respirar, de tanto medo.

O primeiro sismo foi o mais forte a atingir a cidade em 140 anos. Ao longo do dia sofremos mais 63 réplicas e até agora já foram mais de mil.

Nesse primeiro dia de sismos, com muitas pessoas a passar horas na rua de pijama, tivemos neve, que não tínhamos tido durante o inverno. Grande parte da cidade estava sem aquecimento e sem água e então, alguns dias depois, surgiu uma nuvem de poluição tóxica por cima de Zagreb e os cidadãos foram instruídos a “tomar medidas adicionais de precaução”.

“Medidas adicionais”? Já estava potencialmente infetada por uma doença mortal, a dormir num colchão debaixo de uma mesa, num apartamento que treme, com panelas espalhadas para apanhar pingos da chuva e a desinfetar cenouras antes de as comer. Mas quais medidas adicionais? perguntávamos, enquanto enlouquecíamos lentamente a confirmávamos a nossa presença em eventos no Facebook como “Cerimónia de boas-vindas do Godzilla a Zagreb”

Por ter tido febre, tive de prolongar a minha quarentena. Tive de esperar um mês antes de poder aventurar-me mais longe do que o pátio da frente do meu prédio, para as estradas de Zagreb.

Quando tinha entrado para o meu confinamento as ruas estavam cheias de vida, mas agora que saí encontrei um mundo diferente – uma cidade destruída, com poucas pessoas, todas a guardar distância umas das outras.

Mantivemos a disciplina e conseguimos chegar aos zero casos no início o verão. Sentimo-nos muito orgulhosos deste fenómeno e desconfinámos totalmente durante o verão para podermos salvar a nossa economia fraca através do turismo.

Agora, contudo, os números estão piores que nunca. A “Defesa Civil” voltou às conferências de imprensa diárias e aos avisos, mas as pessoas deixaram de cumprir tanto as regras. Acho que as pessoas, sobretudo em Zagreb, sentem apenas a necessidade de voltar a respirar livremente depois de tudo o que passaram.

Entretanto descobri que a palavra “Apocalipse” não significa “O Fim”, mas sim, “Ver o que estava velado, revelar e ter uma nova perspetiva”. Espero que assim aconteça. Podemos não saber o que está ao virar da esquina, mas arranjaremos forma de concluir esta caminhada.


*Tiha K. Gudac é uma atriz, produtora e realizadora que vive e trabalha em Zagreb, na Croácia. A sua primeira longa-metragem enquanto realizadora é “Naked Island”.