Napoleão: populismo e providencialismo
28-04-2021 - 06:40

Napoleão foi um dos primeiros grandes populistas da nossa era. Era do povo, vinha do povo e, lá nos píncaros, sempre cultivou o seu especial talento para arrastar os povos consigo.

A 5 de maio de 1821 – fará na próxima semana 200 anos exatos – desapareceu do mundo dos vivos uma das figuras mais singulares da história da humanidade: Napoleão Bonaparte. A sua vida e a sua obra são a delícia de todos os biógrafos e qualquer biografia dele arrisca ser uma empresa para uma vida inteira e, se bem feita, um best-seller entre franceses e em todo o mundo.

Italiano pelo sangue, francês por pouco (a sua Córsega natal foi incorporada no Estado bourbónico em 1768, apenas um ano antes de ele nascer), Napoleão seguiu a carreira militar e talvez nunca tivesse passado de um soldadinho corso, de sotaque estranho, aspeto pobre, cabelo desalinhado e impetuosidade pouco recomendável, se a sua vida tivesse decorrido no Antigo Regime. A Revolução Francesa, contudo, criou um mundo novo, de “carrières ouvertes aux talents” (como ele se gabaria). Mergulhada num vórtice de instabilidade e radicalismo na sua busca platónica pela melhor liberdade e pela maior igualdade, a França viu sucederem-se regimes e líderes efémeros e engrossar o cerco dos seus inimigos. Num país exangue depois do terror jacobino, o Diretório (1795-1799) precisou do génio militar de Bonaparte para escorar as conquistas da revolução e a sua primeira geografia internacionalizada na Península Italiana, na Suíça, nos Países Baixos ou no Egipto. Gabado como o novo César ou o novo Alexandre, Napoleão alçou-se facilmente ao poder, com o golpe político do “18 de Brumário” (9 de novembro de 1799). A França estava cansada de uma década de agitação; a França precisava do seu salvador, do seu Messias, do seu condutor – precisava de paz e de estabilidade. O vácuo gerou aquele que o preencheria.

Em menos de uma década, o soldadinho corso chegou a 1.º cônsul (1800), de seguida cônsul vitalício (1802), finalmente imperador (1804). E depois, durante mais onze anos, até Waterloo (1815), por detrás do imperador Napoleão, o grande organizador, o grande legislador, o grande “amalgamador”, palpitou sempre o génio do general Bonaparte e do seu grande sonho de uma Europa de povos libertados dos seus Antigos Regimes e construtores de um futuro francocêntrico à escola continental. A sua megalomania terá sido a sua perdição. Mas quando, em 1815, rendido aos ingleses, foi desterrado para a longínqua ilha de Santa Helena, no Atlântico Sul, onde viveu os últimos anos da sua rocambolesca vida, a aventura napoleónica tinha transformado irreversivelmente a Europa.

Napoleão foi um dos primeiros grandes populistas da nossa era. Era do povo, vinha do povo e, lá nos píncaros, sempre cultivou o seu especial talento para arrastar os povos consigo. E na orfandade súbita dos que tinham perdido velhas referências ou, embriagados, procuravam novas, aquele francês, que fez a Europa tremer perante a grande França e a sua “Grande Armée”, tornou-se a encarnação do providencialismo político contemporâneo. A sua aura, bem como uma secreta admiração ou inconfessada nostalgia de um tempo “grande”, ficaram. Depois dele, todos os condutores da França contemporânea quiseram ver-se no espelho do “bonapartismo” – de Napoleão III (seu sobrinho) a Macron, passando por Thiers, Maurras, Poincaré, Clemenceau, Pétain, De Gaulle, Giscard d’Estaing, Mitterrand, Chirac, etc.

O presidente da França não é só um presidente, porque a França, para o bom francês, não é só o seu país, mas uma utopia de grandeza política, histórica, no limite civilizacional. No fim das contas, foi de Napoleão que veio, e em Napoleão sempre se alimentará, aquilo que Charles de Gaulle um dia cunhou como “une certaine idée de la France”. Existirá ela ainda?