Um corvo parou à beira da minha janela.
Eu nem sabia que na minha rua havia corvos.
Acabou por voar para outros sítios, e eu abri a janela, para sentir na pele o calor da manhã. O vizinho do prédio em frente também abriu a janela, e sorrimos e acenámos um ao outro. Eu nem sabia que aquele andar tinha gente.
Ligam-me amigos que eu não ouvia há anos, e eu ligo para amigos que eu nem sei se ainda estarão vivos porque ninguém tinha tempo de telefonar aos amigos.
Ligo para amigos que vivem em Itália, em Inglaterra e em Espanha, e é como se vivessem aqui ao lado. Porque de repente o mundo tornou-se mesmo naquela aldeia global de que o McLuhan falava.
Abro um livro, e leio na dedicatória: “lembra-te de mim”. Nunca mais tinha voltado a pegar neste livro, nunca há tempo para ler, mas agora li-o até ao fim e o amigo já morreu, e eu acho que nunca tive tempo de lhe dizer como gostava dele.
De repente desato a escrever cartas e a receber cartas, num tempo em que se dizia que já ninguém sabia sequer o que era uma carta.
De repente sigo a missa na Capela do Rato aos domingos, pela net—quando inventava sempre pretextos para ficar a dormir porque estava muito cansada ou tinha muito trabalho a despachar.
De repente, tudo o que era distante aproximou-se de nós. Estamos sozinhos em casa –e nunca estivemos tão acompanhados.
E percebemos agora que ninguém está só neste mundo. Que dependemos dos outros, como os outros dependem de nós. E que nenhum homem é uma ilha, como há centenas de anos John Donne descobriu.
É um tempo difícil, claro.
Mas as dificuldades também servem para nos pôr à prova. E quando tudo isto acabar, nunca seremos os mesmos, o mundo nunca será o mesmo.
Mas tudo depende daquilo que fizermos e pensarmos nestes tempos de quarentena.
*Alice Vieira nasceu em Lisboa, em 1943. Escritora e jornalista com grande parte da sua obra dedicada à literatura infanto-juvenil. Premiada pelo conjunto da sua obra, a escritora portuguesa editou, ainda, romances, crónicas e poesia.