O mal, por Rubem Fonseca
17-04-2020 - 10:50

"À medida que vemos o mundo através dos olhos de um assassino, fica claro que amamos como ele, temos raiva como ele; as diferenças estão nos pormenores e talvez na sorte. O mal está dentro de nós, adormecido".

Como é que se escreve sobre o mal? Para mim há duas maneiras, a do Camus e a do Rubem Fonseca, que morreu nesta semana.

Devido à pandemia, Albert Camus ressuscitou no top de vendas com “A Peste”. Ainda bem. É um dos meus livros favoritos. Bernard Rieux, o herói discreto deste romance parábola, é a personificação da decência, o espaço moral intermédio entre a utopia fútil e auto-indulgente e o cinismo da desistência.

Quando a sua cidade é assolada por uma peste, o médico Bernard Rieux não desiste, não cede ao cinismo nem ao desespero. Mesmo não tendo grandes esperanças na Humanidade, Rieux salva um homem de cada vez. Mesmo que aquele mal seja invencível, o dever dele é lutar. No combate à Covid-19, o mundo está a conhecer os seus Bernard Rieux, os heróis discretos que fazem o seu dever no hospital, na rua, em casa.

Nas personagens de Rubem Fonseca encontramos outra coisa. Se em Camus vemos o mal a partir da resistência da decência, em Fonseca vemos o mundo a partir do mal. Tal como Cormac McCarthy, Rubem Fonseca força o leitor a reencarnar na pele de um assassino ou violador, obriga-nos a ver o mundo através desse criminoso ou abusador. Somos forçados a sentir aquilo que essa personagem sente quando está a executar um acto hediondo.

O mal deixa assim de ser uma substância distante; o mal não é o “outro”, o mal somos nós, somos nós que estamos a executá-lo e a senti-lo. Sentimos o prazer do mal, a impunidade do mal, a inteligência sem freio do mal, até a fragilidade do mal. Não sentimos só medo. Sentimos um temor teológico e um desejo de Deus. Queremos correr para o Pai, literalmente; ansiamos por um Deus que nos retire deste inferno.

Além da proximidade em relação ao mal, o temor brota em nós por mais duas razões quando estamos a ler Rubem Fonseca. Em primeiro lugar, percebemos que o mal pode triunfar, que a impunidade é possível, que o mal escapa às leis terrenas e talvez às leis divinas. Talvez. Em segundo lugar, percebemos que não somos assim tão diferentes daquele assassino desenhado pelo ex-polícia Rubem Fonseca. À medida que vemos o mundo através dos olhos de um assassino, fica claro que amamos como ele, temos raiva como ele; as diferenças estão nos pormenores e talvez na sorte. O mal está dentro de nós, adormecido. De resto, aquilo que costumamos apelidar de moral ou ética são soporíferos que mantêm esse mal adormecido.

Se Camus é uma arma, Rubem Fonseca é um espelho.