​Um referendo à eutanásia: a imprudência prudente no cenário da "geringonça 2.0"
11-10-2019 - 19:41


Tal como muitos previam o cenário da legalização da eutanásia em Portugal é, desde domingo, quase inevitável.

Se o processo decorrer como em 2018 e, tendo em consideração o artigo publicado pelo DN sobre a forma como a nova composição do parlamento influenciará a aprovação, a lei será, por certo, aprovada.

Resumidamente, temos do PS 106 deputados, mais 20 do que a legislatura anterior, que, tal como em 2018 se antecipa que sejam maioritariamente a favor da legalização da eutanásia.

Neste cenário basta o BE, que mantém o mesmo número de deputados, para viabilizar a aprovação. Com a liberdade de votos decretada no PSD, onde alguns deputados poderão, tal como o líder do partido, ser favoráveis à eutanásia e com os votos do PAN, Iniciativa Liberal e Livre esta situação é praticamente incontornável. Além disso, os resultados da CDU e do CDS fazem com que sejam perdidos 18 votos contra a aprovação da proposta de lei.

Assim, mobilizar uma estratégia tem que ser uma prioridade para ontem. Eu, que sempre considerei o referendo como indesejável, face à confusão que persiste a nível das terminologias (usadas tantas vezes de forma errada) e, de situações que, de todo não correspondem ao que se pretende aprovar nesta legislatura penso, hoje, que esta alternativa é a nossa última hipótese.

Mas porque a dignidade de quem é tratado e da dignidade de quem trata é violada todos os dias nos cuidados de saúde, eu não me resigno a viver num país que escolha como solução para resolver esta indignidade, o deixar e aceitar matar as pessoas. De facto, a dignidade de todos, que por vezes, poucas…, somos nós, é ameaçada todos os dias.

  • PORQUE o meu diagnóstico e prognóstico não me é comunicado ou é comunicado numa linguagem que não percebo e num tom, no mínimo, desadequado;
  • PORQUE, muitas vezes, profissionais de saúde comunicam entre si como se eu não existisse;
  • PORQUE não me tocam nem olham para mim ou, quando me olham, só veem a minha doença e não o doente que eu sou;
  • PORQUE existem pessoas que porque estão com gripe têm que dormir á porta do centro de saúde para ter consulta;
  • PORQUE cada enfermeiro é responsável por 30 doentes;
  • PORQUE o médico só tem 20 minutos para a consulta (os auditores do Tribunal de Contas sugerem que a redução do tempo para 15 minutos para o atendimento, o que tornaria possível fazer mais 10,7 milhões de consultas);
  • PORQUE metade dos médicos do SNS, têm mais de 50 anos;
  • PORQUE foram registados 637 casos de violência contra profissionais de saúde nos últimos anos;
  • PORQUE existem pessoas que foram transplantadas e o processo falhou porque, entretanto, deixaram de ter recursos para suportar os custos dos medicamentos;
  • PORQUE existem pessoas insuficientes renais que recusam ser transplantados pela impossibilidade de virem às consultas (são de longe) e de assegurarem a compra dos fármacos necessários…a diálise diária é mais barata;
  • PORQUE adiam a cirurgia por falta de anestesistas mas, esqueceram-se de me avisar! Eu vim de longe!! Faltei ao trabalho e paguei uma fortuna de táxi/ambulância;
  • PORQUE a prescrição eletrónica de medicamentos ocupa, quando funciona, entre quatro a 10 minutos de cada consulta;
  • PORQUE é preciso esperar em média 59 dias por uma consulta numa Unidade de Saúde Familiar e 37 dias nas Unidades de Cuidados de Saúde Primários;
  • PORQUE no final do primeiro semestre de 2019 existiam 750 mil utentes sem médico de família;
  • PORQUE os médicos usam 33,4% do seu tempo em actividades não relacionadas com o contacto direto com os doentes;
  • PORQUE a referenciação para os cuidados continuados não tem uma resposta célere e adequada às necessidades do momento;
  • PORQUE querem desinstitucionalizar os doentes mentais sem cuidados continuados de psiquiatria e sem famílias com recursos para ver regressar estes doentes;
  • PORQUE uns podem optar por convenções ou seguros de saúde e outros, só podem escolher o SNS e desesperam a esperar;
  • PORQUE me ferem na forma como comunicam a verdade do meu diagnóstico/prognóstico;
  • PORQUE depois de um diagnóstico que me provoca uma enorme incerteza e ansiedade tenho de esperar por cirurgia e consultas para lá do prazo legal limite;
  • PORQUE me dizem “já não há nada a fazer”;
  • PORQUE a larga maioria da população não tem acesso a cuidados paliativos ou a acompanhamento adequado no final da vida;
  • PORQUE violam o meu direito de poder morrer em casa pois, na grande maioria do país, o acesso a cuidados paliativos domiciliários é uma utopia;
  • PORQUE, em 2018, o buraco no SNS, mesmo neste cenário caótico, agravou-se em 145% e, parece que para alguns a prescrição para esta doença crónica, revista de forma breve e incompleta neste diário clínico em forma de ABC de PORQUÊS, é deixar que as pessoas peçam para morrer. Não é esta a mensagem que eu quero deixar às minhas filhas. “Como se atrevem?”

Ana Sofia Carvalho
Professora do Instituto de Bioética
Universidade Católica Portuguesa