Do silêncio de Estado às promessas. Meio século de reacções políticas à tragédia dos fogos
16-10-2017 - 12:40
 • Rui Barros

Morrem pessoas, pedem-se explicações, trocam-se acusações e apresenta-se legislação. É assim desde 1985 e não o era antes porque o Estado Novo o impedia. Depois de um verão onde morreram quase uma centena de pessoas em Portugal, um conjunto de reacções e acusações políticas durante e pós-fogos, nos últimos 51 anos.

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Domingo, 18 de Junho, uma da madrugada. Marcelo Rebelo de Sousa chega a Pedrógão Grande e abraça o homem que, pouco antes, revelara ao país a morte de 19 pessoas naquela zona, vítimas do fogo.

As imagens do “Presidente dos afectos” e do abraço emocionado ao secretário de Estado Jorge Gomes contrastam com as fotografias amarelecidas de uma outra tragédia: a 6 de Setembro 1966, na Serra de Sintra.

Nessa data, contava o "Diário de Notícias" do dia seguinte, a “mancha de verdura que é o último aceno da Pátria para os que se afastam pelo mar” era consumida pelo fogo, que matou 25 militares do Regimento de Artilharia Anti-aérea Fixa de Queluz (RAAF). Surgiu o topónimo: “encosta da morte”.


Vitória Pires, secretário de Estado da Agricultura do Estado Novo (à esquerda) fotografado pelo repórter do Diário de Notícias em 1966

Nos jornais, sob censura prévia, dá-se a garantia de que não só ministros como também o Chefe de Estado tinham estado no local para dirigir “palavras de encorajamento aos que denodadamente” combatiam o fogo. Nada de citações de políticos dignas de registo, só uma foto de Vitória Pires, secretário de Estado da Agricultura, que, segundo o DN, colaborara “durante seis horas consecutivas” no combate às chamas. A oposição – a que havia – não tinha acesso, enquanto tal, aos jornais. Críticas à forma de actuação e à falta de meios não eram notícia.

Foi preciso esperar 19 anos para que os incêndios em Portugal voltassem a fazer vítimas mortais.

Armamar, distrito de Viseu, 8 de Setembro de 1985: 14 bombeiros voluntários morrem carbonizados em plena serra. Ramalho Eanes, então Presidente da República, é dos primeiros a falar aos jornalistas. Promete “empenhar-se na procura de soluções para apoiar as famílias enlutadas”.

Em democracia, já se fazem perguntas e o "Jornal de Notícias" de 10 de Setembro de 1985 escreve, em subtítulo: “Poderiam tê-los salvo as máscaras que não possuíam?”. O comandante dos bombeiros acredita que sim: “Os bombeiros de Armamar não possuem um gerador de corrente, nem holofotes, nem radiotransmissores”. Fica, então, a promessa de melhores condições para os soldados da paz.

No poder, está já em fim de vida o Bloco Central de Mário Soares e Rui Machete, substituto do repentinamente falecido Mota Pinto. Na vida política portuguesa, enterrado o PREC, sonha-se com a entrada na CEE, agendada para daí a meses. Cavaco Silva já lidera o PSD e há eleições marcadas para Outubro.

Do repúdio geral dos líderes partidários às condições de carência em que actuavam os bombeiros em Portugal, a oposição não poupa nas críticas ao Governo.

Perante a possibilidade de se tratar de fogo posto, o MRPP atribui responsabilidades aos grandes madeireiros, que “propositada e planeadamente” ateiam fogos. Na mesma linha, a UDP acusa a coligação PS/PSD de ou ser “completamente incompetente para enfrentar estas acções criminosas” ou mesmo “convivente com elas”. O partido que viria a estar na base do Bloco de Esquerda denunciava a “orientação submissa” do Governo ao FMI por apostar numa política de exportação de pasta de papel.

O CDS coloca o ministro da Administração Interna, Eduardo Pereira, debaixo de fogo e acusa-o de “visitas demagógicas (…) das quais não saem quaisquer medidas concretas”. Mas o desastre ferroviário de Alcafache acontece dias depois e os 14 bombeiros de Armamar são esquecidos. Havia centenas – nunca se apurou o número exacto – de pessoas para enterrar.

Não é preciso que um ano passe para que uma nova tragédia com origem em incêndios se abata sobre o país. Desta vez, é em Águeda, onde, segundo os recortes da época, 13 bombeiros e três civis perderam a vida. Perante a suspeita de fogo posto, o primeiro-ministro, Cavaco Silva, pede celeridade à Assembleia da República no avanço da legislação já aprovada na generalidade que prevê penas mais pesadas “para que os que provocam a destruição do património florestal e pioram a vida das pessoas”.

O alastramento rápido das chamas é atribuído à falta de limpeza as matas. O governador civil de Aveiro, Sebastião Dias Marques, faz um “apelo legislativo à limpeza de matas” e anuncia que o Governo apresentaria “uma legislação que discipline e puna, com todo o rigor, o desleixo em que se encontram as matas”.

Do então Presidente da República, Mário Soares, um pedido: “Espero que todos nós, daqui para a frente, façamos algo no sentido de evitar estas mortes.”

Daí até hoje, morreram mais de cem pessoas vítimas de incêndios florestais.

A calamidade pública não é coisa do século passado

A compra de novos veículos de combate aos incêndios e a legislação que o Parlamento aprovou não evitou que 2003 se tornasse no "annus horribilis” para os incêndios em Portugal. Entre 1 de Janeiro e 30 de Setembro terão ardido, de acordo com o Livro Branco dos Incêndios Florestais, quase 400 mil hectares. Morrem, de norte a sul do país, 20 pessoas.

O primeiro-ministro, Durão Barroso, é apanhado num turbilhão político e o país pede explicações para a descoordenação no combate às chamas. Antes, como agora, as condições climatéricas assumem “a maior parte da culpa no agravamento dos fogos florestais”. Ferro Rodrigues, líder do Partido Socialista, responde: “Meteorologia não é tudo”.

Incêndios no Verão de 2003 vistos do espaço. Fonte: NASA

No dia 4 de Agosto, o Governo declara “calamidade pública”. "Estamos perante uma tragédia como nunca aconteceu em Portugal em matéria de incêndios. As populações que estão em sofrimento acham sempre que os meios são insuficientes, mas a verdade é que nunca houve tantos meios como agora", defendia aquele que viria a assumir os destinos da Comissão Europeia. Para “momento posterior”, eram atiradas as “ilações sobre os aspectos operacionais”. A 12 de Agosto, fica a promessa de uma reforma da floresta até ao final de Outubro desse ano.

“Verão seco” passa a ser sinónimo de sobressalto para as populações do Portugal rural e, quase todos os anos, nas televisões, há fogos em directo e chamas a rondar casas em lugares onde os jornalistas raramente vão.

Em 2006, era António Costa ministro da Administração Interna e José Sócrates chefiava o Governo, cinco bombeiros chilenos morreram no combate às chamas em Famalicão da Serra, no sopé de uma montanha da cadeia da Estrela.

Daí até 2011, de acordo com dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, ardem mais de cem mil hectares. Não morre ninguém, mas, em 2012, já há seis pessoas para a lista de vítimas e em 2013 o número cresce: nove mortos em sete mil incêndios.

“A grande responsabilidade de toda esta situação é a ausência de uma política florestal e o abandono da floresta portuguesa”, apontava nas páginas do "Jornal de Notícias", em 2013, o presidente da Escola Nacional de Bombeiros, José Ferreira.

Dias antes, Miguel Macedo, ministro da Administração Interna de Passos Coelho, reconhecia que os fogos “são uma inevitabilidade, dado o estado de abandono em que está uma grande parte da floresta”. Anos antes, em 2003, Jorge Sampaio sugeria a “associação dos 600 mil proprietários que detêm 85% dos 3,3 milhões de hectares de floresta nacional”. Não aconteceu.

Um abraço presidencial

A actuação presidencial em Pedrógão Grande não foi uma estreia. Há um ano, na Madeira, Marcelo Rebelo de Sousa quis mostrar e transmitir a solidariedade de todo o país à Madeira, onde as chamas correram encostas abaixo rumo às casas dos madeirenses.

O incêndio, que começou numa segunda-feira à tarde numa freguesia do Funchal, foi-se alastrando ao resto da ilha, com ventos fortes e temperaturas altas a servirem de rastilho para mais uma tragédia. Três pessoas morreram, 327 ficaram feridas, cerca mil pessoas ficaram sem casa.

Marcelo aterra a 10 de Agosto na ilha para “dar o abraço de Portugal à Madeira”. O olhar do Presidente já apontava para o amanhã, para a reconstrução das casas e infra-estruturas reduzidas a cinzas. O governo de Costa responde com a promessa de apoio financeiro às áreas ardidas.

As imagens de uma Madeira arder replicam-se nas redes sociais e, nas caixas de comentários como nos painéis televisivos, comentadores perguntam-se: “Porquê”? António Costa promete fazer o que ainda não foi feito criar uma floresta “mais resistente, mais sustentável, de uso múltiplo e capaz de fixar população”.

Um ano depois, nova tragédia, novo abraço, as mesmas promessas.

Morreram 64 pessoas em Pedrógão Grande, em Junho de 2017. Em Outubro do mesmo ano, são mais de 30 mortos.

[Trabalho actualizado a 16/10/2017, na sequência dos incêndios do dia 15]