"Elogio da sede". Palavras do padre português que orienta o retiro do Papa
19-02-2018 - 06:50
 • Padre Tolentino Mendonça

Padre Tolentino Mendonça foi convidado a orientar o habitual retiro de Quaresmo do Papa e partilha com os leitores da Renascença o tema das meditações que propõe a Francisco e aos seus colaboradores mais diretos.

Porquê falar da sede? Porquê pregar sobre a sede? Uma coisa que me preocupa muito concretamente é que a fé tenha não só uma credibilidade racional, mas seja também credível do ponto de vista existencial e antropológico. A fé não é uma ideologia: é uma experiência. A sede é um tema que mostra isso bem. A sede não é uma ideia, mas revela a vida na sua realidade. Não é por acaso que a Sagrada Escritura faça da sede um tópico recorrente. E que, por exemplo, mais de que uma vez, escutemos Jesus nos Evangelhos dizer que tem sede. Que significa essa sede? E que pode ela significar para nós nesta estação concreta da vida da Igreja? A espiritualidade e a mística cristãs cultivaram com sabedoria esta temática da sede, mas essa pode funcionar também como um oportuno mapa para afrontarmos o presente.

Quando acolhemos com verdade os desafios da sede, percebemos que a coisa mais importante não é propriamente saciá-la, mas interpretá-la, aprofundar o seu sentido, intensifica-la, levá-la mais longe. A sede, em si mesma, é um património espiritual. Como dizia a poetisa Emily Dickinson “é a sede que nos ensina a água”. Temos de ter a coragem de tomar a sede como mestre nos caminhos da alma.

É claro, que devemos vigiar o perigo de tomarmos confortavelmente a sede apenas num sentido simbólico e espiritual e esquecermos o seu sentido literal. A sede, porém, não nos fecha em nós mesmos. Pelo contrário, ela coloca-nos perante a pergunta que Deus faz no princípio: “Onde está o teu irmão?”. Há uma sede das periferias que nos obriga a reinventar o sentido da fraternidade, não como um conceito, mas como uma prática.

A sede do nosso coração precisa de ser purificada e redirecionada. Numa sociedade de consumo, como é aquela típica do mundo ocidental, a sede é muitas vezes reduzida a um gesto de consumo. E, aquilo que hoje colhemos como problema grave das nossas sociedades, é que a hiperestimulação do desejo está a gerar uma incapacidade de desejar. As pequenas sedes que nos absorvem tornam-se um obstáculo para viver a grande sede: a sede de sentido, de verdade, de beleza, de absoluto ou de infinito.