O que mais me pode acontecer? Paciente = paciência
26-07-2019 - 17:51
 • Ana Sofia Carvalho*

Já não só teremos de fazer escolhas de quem irá beneficiar dos novos fármacos inovadores com preços exorbitantes, mas, a continuar assim, o esquema de decisão de alocação terá que ser estendido a todos os fármacos. Quais os bebés que terão, por exemplo, prioridade na vacinação à nascença?

A senhora dona Maria não se sente bem… Está triste, desmotivada e custa-lhe cada vez mais fazer as tarefas diárias. Preocupado, o marido insiste que vão ao “posto”. Após alguma resistência, acaba por aceitar e, então, começa a novela.

Tenta ligar para marcar consulta; nada… Decide, após dois penosos dias agarrado ao telefone, deslocar-se de autocarro, 45 minutos de curvas e paragens, para marcar a consulta. Infelizmente, e após horas de espera, é-lhe comunicado que no tempo de férias é impossível agendar consultas e, sendo uma situação que não pode aguardar até outubro (estamos em julho), o melhor será vir logo muito cedo e ficar a aguardar que alguém os atenda.

Às 7 da manhã do dia seguinte lá estão. Às 14h, finalmente, conseguem a consulta e, após dez minutos sem grande conversa e com os olhos fixos no ecrã, saem com a indicação para uma consulta da especialidade que, infelizmente, só é possível daqui a 4 meses.

Quatro meses volvidos, o neurologista receita um batalhão de exames; mas, uma vez mais, a marcação dos exames irá demorar três meses… E a novela continua, até que, quase um ano, depois é-lhe comunicado um diagnóstico de doença de Parkinson.

Atrapalhados, confusos, derrotados, apanham o autocarro para mais uma viagem. Felizmente o doutor disse que a medicação iria surtir muito efeito e, é com uma tristeza expectante, que se dirigem à farmácia da vila. Mas, surpreendentemente, um local que nos habituámos a ver como o final do martírio mudou. A menina continua a ser uma jóia e fala e trata o casal com o carinho que muitos têm dificuldade (?) em expressar mas, por motivos que não entendem, o medicamento não está disponível... talvez na próxima semana já tenham “stock”. Afinal, o lugar que nos habituámos a ver como o final seguro de uma epopeia entre centros de saúde e hospitais também está a falhar…O que mais lhe pode acontecer???

Como podem verificar sou fraca em guiões de novelas. No entanto, após os resultados apresentados pela Associação Nacional das Farmácias (ANF) e tendo em consideração as histórias que ouvi ontem numa rádio nacional durante a viagem Porto-Lisboa, não resisti a tentar esboçar os contornos da “via sacra” de alguns doentes no sistema de saúde nacional.

Esta improvisada novela daria para nos debruçarmos sobre uma multiplicidade de temas. No entanto, decidi, porque existe uma iniciativa do Ministério da Saúde nesse sentido[1], elaborar um pouco mais sobre as questões éticas da escassez/falta de medicamentos nas farmácias.

A escassez de medicamentos em contexto de farmácia e hospitais é um problema de dimensão crescente em todos os países. Além disso, hoje sabemos que existe um aumento bastante expressivo em diferentes dimensões: (a) no número de medicamentos em falta; (b) na duração da escassez; (c) no número de produtores e distribuidores com problemas de produção e distribuição; (d) no número de classes terapêuticas afetadas.

Muito se tem escrito sobre as causas do problema que, tentando não ser exaustiva, poderão ser articulados em duas importantes dimensões. Por um lado, um aumento significativo do consumo mundial de medicamentos: (a) porque globalmente somos mais e, mais equilibrados do ponto de vista de capacidade de consumo (países que finalmente tem capacidade económica para uso de certos fármacos) e, (b) porque morremos mais tarde e, em alguns países como em Portugal, envelhecemos doentes o que, por certo, terá influência no consumo. Por outro, pela complexidade da cadeia de produção e distribuição dos medicamentos, quer ao nível das restrições colocadas relativamente à forma como os medicamentos são produzidos, regulamentados e pagos, quer na forma como é gerida a cadeia de produção/distribuição dos medicamentos.

As consequências deste problema são seríssimas e têm enormes repercussões éticas nos diferentes atores do Sistema Nacional de Saúde (SNS). Relativamente ao ator principal, o doente, os resultados obtidos pelo(s) Observatório(s) do Medicamento, quer seja através da ANF ou do INFARMED (talvez a forma do cálculo seja irrelevante para a análise do problema – os números maiores ou menores são insignificantes do ponto de vista da análise ética); o que interessa, verdadeiramente, é que existem alguns (INFARMED) ou muitos (ANF) doentes afetados por este problema.

É certo que os doentes individuais, a população em geral e o sistema de saúde estão a ser prejudicados por esta situação; de facto, esta situação poderá causar comprometimentos irreversíveis na eficácia clínica do tratamento e, certamente, provocará enorme ansiedade e angústia naquele que já está vulnerável e frágil.

Hoje, é para mim claro que as questões relacionadas com o princípio da equidade na justa alocação dos recursos ganha, com esta questão, uma maior complexidade. Assim, já não só teremos de fazer escolhas de quem irá beneficiar dos novos fármacos inovadores com preços exorbitantes, mas, a continuar assim, o esquema de decisão de alocação terá que ser estendido a todos os fármacos. Quais os bebés que terão, por exemplo, prioridade na vacinação à nascença? Isto é, de facto, um “abominável mundo novo”.

[1] O Governo tem em mãos um projeto que pretende alterar o estatuto do medicamento, o que, não resolvendo a questão, mostra sensibilidade ética para o problema

*Professora do Instituto de Bioética, Universidade Católica Portuguesa