O escritor judeu norte-americano, Richard Zimler, acedeu conversar com a Renascença sobre o conflito entre Israel e o Hamas depois de muito pensar. "Hesitei várias vezes em falar consigo, porque sempre que eu falo de Israel, essa máquina de relações públicas entra em contacto comigo e insulta-me", partilha.
Num mundo polarizado, em que o ódio é o combustível dos extremistas, Richard Zimler diz que para os moderados é cada vez mais difícil falarem sobre um conflito entre o fogo cruzado das narrativas de Israel e do Hamas. No espaço público quase só se aceita que se seja a favor ou contra um dos lados.
"Não participo em manifestações pró-palestinianos ou pró-israelita neste momento. Quero evitar isso, porque estou a favor dos dois povos e quero oportunidades para os dois povos. Quero paz, quero tranquilidade. Quero uma situação em que os jovens dos dois lados possam realizar os seus sonhos."
Há várias décadas a viver em Portugal, Zimler acredita que este é um tema em que a moderação não é bem aceite. Quando escreveu um romance sobre o conflito, “À procura de Sana”, aprendeu "que nada que eu pudesse dizer vai satisfazer um dos lados".
"É uma guerra tribal, um conflito tribal de surdez", assinala o escritor de origem judaica, de 67 anos.
Como autor traduzido em 23 línguas, Zimler dá uma grande importância às palavras e está contra o uso de termos fortes e radiciais, como os que têm sido usados neste conflito, por ambos os lados. Rejeita comparações entre o massacre de 7 de outubro e o Holocausto, mas também não vê que esteja em curso um genocídio em Gaza.
Esta conversa decorreu antes do início da entrada de camiões com ajuda humanitária na Faixa de Gaza.
Como viu os acontecimentos do último 7 de outubro em Israel?
A minha perspetiva é que foram crimes contra a humanidade, evidentemente. Atacaram o festival de música e mataram 260 jovens. É uma barbaridade. Não tem qualquer justificação ética ou estratégica ou moral. E logo a seguir eu escrevi a uma amiga israelita e ela disse-me uma coisa interessante: que para ela e para muitos israelitas era o 11 de Setembro, era o 11 de setembro israelita. Ou seja, o choque, o terror, o medo do futuro, a lamentação, o luto.
Isso foi importante para mim, porque eu compreendi bem o que é que eles sentiam, porque para os americanos, sobretudo para a gente de Nova Iorque, como eu, o 11 de Setembro foi decisivo. Há uma história de Nova Iorque antes do 11 de setembro e depois. É possível que, para os israelitas, haja um antes destes massacres feitos pelo Hamas e um depois.
Então vamos ver o que vai acontecer depois. As indicações, neste momento, são péssimas.
Que impacto está a ter na psique dos judeus e dos israelitas e que consequências terá no futuro? Vai perdurar mais do que a Guerra de Yom Kippur?
É difícil prever, mas eu diria o seguinte: Israel é um país pequeno, como Portugal, tem quase 10 milhões de habitantes, e perder, não sei quais são os números, mas 1.000 pessoas em ataques terroristas é como em Portugal perder 1.000 pessoas no festival de música de Vilar de Mouros ou na Zambujeira. Todo o país está afetado emocionalmente, psicologicamente, espiritualmente.
"Para muitos israelitas foi o 11 de Setembro, foi o 11 de setembro israelita. Ou seja, o choque, o terror, o medo do futuro, a lamentação, o luto".
Esquecer o dia do ataque do Hamas não vai acontecer nos próximos anos. Vai ser necessário uma década, duas décadas. É uma tragédia. Vai tornar a possibilidade de negociações de paz quase impensável para os israelitas. Eles não vão negociar com o Hamas, não vão negociar com a Autoridade Palestiniana, isso não vai acontecer.
Os políticos dos dois lados, que não estão a favor de uma solução, estão reforçados por estes acontecimentos. E é, de facto, trágico, porque nós queremos paz.
De que forma a existência de reféns muda as características deste conflito?
Eu acho que muda radicalmente o conflito, porque cria uma situação psicológica para todos os israelitas de se sentirem eles próprios sequestrados. Todas as famílias israelitas são, de uma certa forma, prisioneiras desta situação de reféns, porque enquanto houver reféns na posse dos terroristas, o povo israelita não pode começar a pensar numa solução, no futuro, porque ainda está a acontecer e as famílias estão a viver um pesadelo absoluto.
Imaginem ter um filho, neto, pai, mãe, refém nas mãos de terroristas. De uma certa forma, toda Israel é refém desta situação, é uma situação psicológica duríssima.
Como é que os judeus com quem fala veem esta falha de segurança que permitiu estes ataques sangrentos? Vimos manifestações em Israel críticas do Governo. Depois do contra-ataque ao Hamas, os israelitas vão perdoar esta falha a Netanyahu?
Um amigo meio israelita, que, aliás, é Prémio Nobel em ciência, mostrou algum desapontamento com o Governo israelita. Ele disse que, no mínimo dos mínimos, pensava que deviam garantir a segurança.
Mas talvez seja uma expectativa irrealista, porque quando há uma situação de conflito armado, como é que um Governo pode garantir absolutamente, com 100% de confiança, a segurança de um povo? E talvez seja impossível, mas alguns israelitas, amigos meus, demonstram esse desapontamento.
Os meus amigos também são muito progressistas em geral e detestam Netanyahu. Pensam que é um político corrupto, é um político de direita, e tem membros do Governo que são de facto meio fascistas e racistas.
Milhões de israelitas, depois destes acontecimentos, marcharam nas ruas para mostrar a sua insatisfação com Netanyahu. Eles não querem Netanyahu como primeiro-ministro.
Como é que olha para Netanyahu enquanto líder do Estado de Israel? Yuval Harari classifica-o como um genial relações-públicas, mas um primeiro-ministro incompetente.
É uma péssima pessoa. Eu diria que nem é necessário dizer que é um péssimo primeiro-ministro. É uma pessoa na qual eu não tenho confiança. Ele quer enfraquecer a democracia israelita. O objetivo número um de Netanyahu é manter o seu poder. Isso para mim é óbvio.
Não tenho confiança nos políticos, cujo objetivo é só esse. Bom relações públicas? Não sei. Hoje tivemos notícia de um bombardeamento a um hospital na Faixa de Gaza. Isso não vai criar relações públicas muito favoráveis a Israel, se for concluído que Israel esteve atrás deste ataque. Acho que há, de facto, uma máquina das relações-públicas em Israel, que vai tentar fazer spin.
Vai dar uma orientação a qualquer notícia que seja positiva para Israel. E eles têm muita gente a fazer isso. Aliás, eu hesitei várias vezes em falar consigo hoje, porque sempre que eu falo de Israel, essa máquina de relações públicas entra em contacto comigo e insulta-me.
Como vê as pressões globais para alinhar a narrativa com o Governo de Israel?
A minha ótica é de que isto é um conflito tribal, ou seja, dos dois lados é um "nós contra eles". Só temos amigos ou inimigos e isto dá para os dois lados.
Então, quando eu falo, por exemplo, de compaixão e entendimento que devíamos ter para com as vítimas palestinianas, os pais e os homens que estão a perder filhos e gente que morreu no hospital, alguns israelitas radicais atacam-me porque encaram-me como o inimigo, apenas porque eu estou a falar dos palestinianos como seres humanos que merecem mais, como pessoas que vão sofrer com estes ataques.
E quando eu faço o contrário, quando eu demonstro solidariedade e empatia para com as vítimas israelitas, recebo insultos de pessoas de uma esquerda radical que não aceita isso. E há outra coisa: há muita gente, sobretudo de esquerda radical, que não percebe a diferença entre um judeu como eu e um israelita.
Sempre que Israel faz alguma barbaridade, recebo mensagens que são insultuosas.
Sente-se ameaçado pessoalmente?
Felizmente estou em Portugal, que é um país muito calmo, muito pacato, e eu sinto-me muito bem aqui. Temos pouco antissemitismo. Mas eu não gosto de receber insultos, daí falar pouco desta situação.
Eu já escrevi um romance sobre o conflito, “À procura de Sana”, e a partir desse momento aprendi que nada que eu pudesse dizer vai satisfazer um dos lados.
Eles não ouvem. É um conflito também de surdez. E estes israelitas radicais, religiosos ortodoxos, não ouvem, realmente não ouvem, as pessoas a falarem dos palestinianos e o sofrimento dos palestinianos. Não ouvem quando falo da empatia que eu tenho para com Israel. É uma guerra tribal, um conflito tribal de surdez.
O que pensa quando o ministro israelita da Defesa diz que estão a lutar contra "animais"?
Isso para mim é horrível. As palavras têm importância. Eu sou escritor. A utilização de uma palavra pode mudar a situação e tratar os palestinianos como animais é inaceitável, completamente inaceitável. Eu lembro-me muito bem dos nazis. Trataram os judeus como animais, baratas, cães, porcos. Acho que devíamos evitar qualquer comparação com animal que não seja o ser humano.
Os palestinianos são seres humanos, são capazes de atos generosos e maravilhosos, heróicos, mas também há grupos terroristas que são capazes de barbaridades e de situações que não têm qualquer perspetiva ética. Os israelitas também não são animais, não são porcos. Utilizar uma linguagem insultuosa, neste momento, é um sinal péssimo.
Israel e Palestina foram capturados politicamente pelas fações mais extremistas, sendo que a guerra é inequivocamente combustível para uma maior radicalização. É possível quebrar este ciclo de violência e ódio?
Tenho sempre esperança. Um fator que poderia ser importante seria a Organização das Nações Unidas (ONU). Eu sempre achei que as Nações Unidas deviam ser mais envolvidas nesta situação, para proteger os palestinianos, para proteger os israelitas, para criar uma certa fronteira de civilização entre os dois povos. Mas por alguma razão, que eu não conheço e eu não sou especialista nesta área, as Nações Unidas não têm poder nesta situação. Não conseguem agir como intermediário.
Não podemos fazer essa comparação [com o Holocausto], para mim isso é inaceitável. [Do outro lado] às vezes, gente da esquerda radical diz que os israelitas são nazis. Não são nazis, não têm nada a ver com nazis.
Os Estados Unidos também podiam ter um papel importante, mas estamos perto de uma eleição e o Joe Biden não quer arriscar mudar a política americana em relação a Israel. Isto para mim é quase óbvio, ele vai manter a política americana de sempre. Vai apoiar Israel, enviar armas, tropas se for necessário.
Os Estados Unidos, neste momento, não vão ser uma grande ajuda, nem os países árabes.
Vai ser fácil manter o apoio ocidental a Israel com o desenrolar dos bombardeamentos a Gaza e com cada vez mais imagens de civis mortos e feridos?
Acho que o Presidente vai conseguir manter esse apoio dos Estados Unidos por várias razões que têm a ver com a população americana e não tanto com os judeus. Curiosamente, muita gente pensa que os judeus têm uma influência enorme sobre o Governo americano. Têm influência, é verdade, mas também temos 50, 60 milhões de evangélicos que são muito mais importantes.
Eles querem um Israel judaico, e um Israel dos judeus, por razões religiosas complicadas e teorias de conspiração. Então nenhum Presidente quer perder esse apoio. Isso não vai mudar.
A Europa é diferente. Eu acho que as opiniões públicas na Europa podem mudar se for provado, por exemplo, que as forças de defesa israelitas bombardearam este hospital na Faixa de Gaza, matando 500 pessoas. Pode mudar o apoio, porque é obviamente um crime contra a humanidade bombardear um hospital.
Têm sido usados termos fortes para definir o que está a acontecer. Os israelitas, nomeadamente o primeiro-ministro Benjamim Netanyahu, comparam o que aconteceu no kibuttz Kfar Aza ao Holocausto. Faz sentido?
Acho que é muito perigoso comparar um evento não comparável, um ataque terrorista com o Holocausto, em que morreram seis milhões de judeus, 500 mil ciganos, em condições inacreditavelmente horríveis nos campos de extermínio.
Não podemos fazer essa comparação, para mim isso é inaceitável dos dois lados. Às vezes, gente da esquerda radical diz que os israelitas são nazis. Não são nazis, não têm nada a ver com nazis.
Eles cometem crimes contra a humanidade e crimes de guerra, mas não são nazis. Isso é outra coisa. Isso é uma maneira de provocar.
Eu não estou a favor de provocações desnecessárias dos dois lados. São simplesmente ataques terroristas. E estamos habituados, infelizmente no nosso mundo, a ataques terroristas.
A quem serve a utilização dessa linguagem tão forte, que tem uma carga sentimental tão forte para os judeus? Serve de alguma forma para legitimar o ataque ou a ofensiva que está a decorrer em Gaza?
É uma maneira de jogar com as emoções dos israelitas e dos judeus de todo o mundo. Porque comparar com o Holocausto para nós é comparar com a maldade absoluta. O Holocausto para nós era maldade pura e absoluta, sem comparações. É uma maneira de tentar conseguir que as pessoas deixem de usar o cérebro e raciocinar.
Eles só utilizam as emoções. E obviamente, isso é uma situação perigosa. Quando nós só obedecemos às nossas emoções mais primárias, somos capazes de criar, neste caso, represálias desmesuradas. Talvez seja uma técnica útil para Netanyahu, mas eu discordo completamente dessa comparação.
Do lado palestiniano temos ouvido repetidamente a palavra genocídio, agora também pela voz de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestiniana. Richard Zimler no passado rejeitou esta definição. Mantém a opinião ou a contraofensiva israelita com o bloqueio de água, luz e comida mudou a forma como olha para a situação?
Para mim, um genocídio tem como objetivo destruir, matar um povo inteiro e destruir a cultura toda, a memória de um povo. Acho que os israelitas não estão a fazer isso, estão a cometer crimes contra a humanidade, crimes de guerra, estão a criar uma situação insustentável de ocupação que dura há 70 anos.
Estou completamente contra isso. O que está a acontecer na Faixa de Gaza, então? Para mim, a comparação mais justa é a um gueto, típico dos guetos da II Guerra Mundial, em que as pessoas eram encarceradas numa prisão ao ar livre. Os palestinianos não têm qualquer direito de movimento, não podem sair, não podem entrar.
A Cisjordânia está completamente isolada da Faixa de Gaza. Isso é outra situação terrível para as famílias palestinianas, porque há uma parte da família que vive na Cisjordânia e uma parte que vive em Gaza e não conseguem manter o contacto. Isso é terrível. Para mim é um gueto, não tem qualquer justificação ética.
Na minha opinião, tem de haver uma solução para isto, uma solução em que os palestinianos tenham liberdade de movimento e possam ir à Cisjordânia sem dificuldade.
A maldade em Israel é mais lenta, ou seja, temos uma ocupação de 70 anos, temos a construção de colonatos judaicos nos últimos 30, 40 anos. Isso também é maldade, mas é uma maldade mais lenta e daí mais suave. É uma acumulação do sofrimento e uma acumulação de gestos sem sentido. Criar colonatos judaicos na Cisjordânia só vai aprofundar o conflito.
Mas tenho pouca esperança de que vá acontecer no futuro próximo, porque estes ataques do Hamas criaram uma atmosfera e um contexto em que fazer concessões e fazer negociações é quase impossível.
O embaixador israelita em Portugal referiu-se à morte de civis nos bombardeamentos a Gaza como "danos colaterais". Sabendo que a população de Gaza é composta sobretudo por crianças, jovens e mulheres, para um judeu é fácil aceitar que crianças e mulheres palestinianas possam ser consideradas danos colaterais?
Não é tanto como judeu, é como americano. Porque eu lembro-me muito bem da guerra no Vietname. Nos anos 70 e fim dos anos 60, em que os americanos, os generais e os presidentes falavam de danos colaterais. E quem eram os danos colaterais? Eram civis vietnamitas, famílias inteiras, aldeias inteiras. Esse termo é um termo de propaganda.
Os danos colaterais não são danos colaterais, são famílias inteiras, são pais, são crianças que vão viver sem os pais o resto da vida. Usar esse termo para mim é quase orwelliano, ou seja, do "1984". É uma tentativa de esconder a verdade. As pessoas sofrem e vão sofrer durante anos.
Qual a linha moral que divide um lado e o outro? Com o desenrolar da guerra onde vai ela ficar?
A linha moral é difícil de definir. Eu lembro-me de Netanyahu falar do Hamas como a maldade pura, em inglês usa-se o termo “evil”, que é muito forte. É, de facto, uma maldade pura matar 260 jovens num festival de música, matar bebés, queimar os corpos dos bebés, isso é de facto maldade, mas é uma maldade rápida e instantânea.
A maldade em Israel é mais lenta, ou seja, temos uma ocupação de 70 anos, temos a construção de colonatos judaicos nos últimos 30, 40 anos. Isso também é maldade, mas é uma maldade mais lenta e daí mais suave. É uma acumulação do sofrimento e uma acumulação de gestos sem sentido. Criar colonatos judaicos na Cisjordânia só vai aprofundar o conflito.
Quando nós falamos de domínio moral, estamos quase a falar de duas maneiras de criar condições de sofrimento para o outro povo. E eu confesso que não sei onde posso encontrar essa linha moral.
Este é um tema que normalmente polariza posições de imediato, por todo o mundo, mais do que qualquer outro de política internacional. Ou se está a favor de Israel ou se está a favor da Palestina. Porquê?
Para mim é um mistério. Temos um milhão de uigures em campos de concentração na China e ninguém fala deles, ninguém tem interesse. Temos outras situações de gueto e conflitos e limpezas étnicas e ninguém fala. Mas Israel é sempre focado, porquê? Acho que as razões são psicológicas, históricas.
Ou seja, todos nós sabemos que os judeus eram vítimas dos nazis no Holocausto e foi uma tragédia sem precedentes na história mundial. Seis milhões de mortos. Todas as famílias judaicas como a minha foram afetadas por isso. Nós perdemos toda a nossa família europeia.
Agora, ver uma situação que é o contrário, em que os judeus, os israelitas, são de facto os ocupantes de outro território, em que os judeus têm muito poder, muitas armas e estão a criar condições insustentáveis, terríveis para o outro povo, psicologicamente mexe com as emoções das pessoas.
A vítima torna-se no povo que vai vitimizar outro povo. Acho que isto mexe com as nossas noções de justiça. Não é justo, porque um povo tão vitimizado como os israelitas devia compreender o sofrimento dos palestinianos. Devia compreender o sofrimento dos pais que perdem filhos.
Eu acho que é o momento em que todos nós devíamos evitar as redes sociais. É um apelo que eu faço.
Acho que é um conflito, eu não diria único, mas um conflito que atrai a nossa atenção por razões psicológicas.
Isso reflete-se no trabalho dos jornalistas? Acha que têm conseguido manter equidistância ou também o jornalismo está a tomar parte no conflito?
É difícil dizer, eu vejo os diários televisivos e leio alguns jornais e penso que os jornais que eu leio, como o Guardian, em Inglaterra, estão a tentar manter, não diria uma objetividade, porque não acredito na objetividade, mas estão a tentar apresentar e divulgar várias perspetivas sobre a situação e acho isso muito positivo. Evito as redes sociais, porque no Facebook, no Twitter (X), não é possível conseguir informações fidedignas e isso é um risco deste conflito, porque vai haver ondas de notícias falsas.
Temos de ter muito cuidado com qualquer notícia que sai. Mas as televisões que eu vejo, os jornais que eu leio, estão a tentar manter algumas perspetivas diferentes e estou contente com isso. Acho que é o momento em que todos nós devíamos evitar as redes sociais. É um apelo que eu faço.
Uma guerra paralela à que se assiste no terreno é a guerra da desinformação. Qual o papel que desempenha no desenrolar do conflito?
Vai ser difícil apurar a verdade. Mas vamos conseguir. Vamos conseguir saber quem é que atacou este hospital da Faixa de Gaza, por exemplo. Vai levar algum tempo, temos de ter alguma paciência. As redes sociais não têm paciência, querem informações no momento. Evito o Twitter e o Facebook, porque eu não tenho confiança nas notícias [ali veiculadas].
Não tenho de confiar nas pessoas, porque há organizações de propaganda que fazem isso propositadamente, que lançam notícias falsas precisamente para conseguir captar a opinião pública. Temos de ter muito cuidado nesta situação.
Uma maneira de tentar evitar essas notícias falsas é falar com as pessoas nos locais, é falar com os palestinianos cujos bairros foram destruídos e falar com os médicos e enfermeiros do hospital destruído. Do lado do Israel é falar com as famílias que têm familiares reféns do Hamas.
Acho que isso é importantíssimo, estar no sítio e não contar com reportagens no Twitter. Isso seria um disparate total.
Concorda que a Assembleia da República tenha projetado as cores da bandeira de Israel na sua fachada? Portugal deve tomar este tipo de posição?
Fico dividido em dois, porque, por um lado, acho que é positivo mostrar solidariedade com Israel e mostrar a nossa empatia, porque muita gente foi morta em ataques terroristas e é importante denunciar isso sempre e denunciar a utilização de violência, denunciar o sofrimento. Acho que isso é importante.
Por outro lado, não sei. Acho que devíamos mostrar mais empatia para com o povo palestiniano, porque o povo palestiniano não é o Hamas. O Hamas não representa todo o povo palestiniano. Estão a trair os sonhos do povo palestiniano, porque estão a criar condições para que nunca possa haver dois Estados, nunca possa haver um Estado palestiniano independente.
O Hamas tem uma estratégia absolutamente contraproducente. Se calhar deveríamos evitar essas demonstrações simbólicas neste momento. É um momento tão delicado, tão difícil para os dois povos, que talvez fosse melhor não manifestar apoio, não fazer manifestações.
É por isso que eu não participo em manifestações pró-palestinianos ou pró-israelitas neste momento. Quero evitar isso, porque estou a favor dos dois povos e quero oportunidades para os dois povos. Quero paz, quero tranquilidade. Quero uma situação em que os jovens dos dois lados possam realizar os seus sonhos.
Teme que o que está a acontecer na Faixa de Gaza acenda um rastilho de violência em todo o mundo entre judeus e muçulmanos, nomeadamente na Europa?
Não sei bem o que está a acontecer na Europa. Eu estive na Suécia recentemente e também na Dinamarca e os meus amigos lá, alguns judeus, alguns que não são judeus, dizem que o antissemitismo nesses países está muito virulento, muito visceral, em parte fomentado pelas comunidades árabes nesses dois países e em França também. Ser judeu, neste momento, é de facto um perigo e um risco.
Quando estou em Paris não entro em lojas e supermercados judaicos, evito isso. Eu quero evitar complicações de conflitos. E, de facto, os judeus sentem-se ameaçados na Europa atualmente. Não gostaria de estar na Polónia ou na Hungria neste momento. Por exemplo, hoje em Espanha, curiosamente, as sondagens mostram que os níveis de antissemitismo são astronómicos, que é uma coisa que não compreendo, porque quase não há lá judeus.
Na Grécia, também os meus amigos gregos dizem que o antissemitismo é visceral e perigoso. E eu fico perplexo, porque passaram 75 anos depois do Holocausto e agora a Europa é perigosa para os judeus. Isso mexe com as minhas emoções e ideias. Mas é uma demonstração de que poucos seres humanos aprendem com a História.
Concorda que França e Alemanha proíbam manifestações pró-Palestina e que o Reino Unido criminalize qualquer manifestação de apoio ao Hamas?
Percebo o que eles estão a tentar fazer, evitar confrontações entre os dois lados. Percebo isso muito bem. Não sei se proibir é a melhor estratégia. Cria-me algum medo ver estas manifestações pró-Hamas, porque eu sei que uma grande parte dessas pessoas podem odiar-me, podem achar que eu sou o demónio, porque sou judeu e eles não conseguem distinguir entre o judeu e o israelita.
Tenho emoções mistas, acho que não devíamos proibir, em geral, manifestações pacíficas. Mas, por outro lado, eu não gosto de ver pessoas que me odeiam demonstrá-lo em público. Não gosto, e como ser humano, como ser frágil, fico com algum medo.
A religião ainda desempenha um papel importante no conflito ou hoje é mais político e territorial?
A religião tem um papel. Há judeus muito conservadores, muito ortodoxos, muito religiosos, que acham que o povo israelita tem um direito bíblico à terra prometida, a todos aqueles territórios. Eu não acredito em direitos bíblicos. A Bíblia, o Antigo Testamento, é um documento de há três mil anos. Não acredito que um documento de há três mil anos possa determinar a geopolítica de 2023.
Ainda por cima, se olharmos cuidadosamente para o Antigo Testamento, aquela é geralmente referida como a terra dos canaanitas. Não eram israelitas, não eram judeus. Então, mesmo nessa altura, há três mil anos, não foi sempre considerada a terra dos judeus.
Em Israel, a religião tem um papel, os partidos políticos religiosos têm uma influência grande no país, no Governo e não só. Não sei se muita gente sabe, mas não é possível ter um casamento civil em Israel. Se eu quisesse casar com o meu marido de uma forma civil, sem o rabino, não posso. Não tenho o direito. Israel foi criado como um país judaico.
Eu compreendo as razões históricas para isso, mas discordo dessa política.
O Hamas é uma organização islamista e é composto por muitos fundamentalistas. O Hezbollah e a Irmandade Islâmica são compostos por fundamentalistas muçulmanos, que tal como os fundamentalistas cristãos e judaicos pensam que há uma só verdade, que é a deles. E que todos os outros povos deviam ser silenciados ou exterminados.
Sou um grande inimigo do fundamentalismo, quer seja judaico, muçulmano, cristão ou budista. Acho que isso é um erro enorme nosso, da nossa época, voltar aos tempos do fundamentalismo.
Alguma vez acreditou na possibilidade de haver dois Estados, Israel e Palestina?
Acreditava. Tinha esperança. Lembro-me muito bem quando o Anwar Saddad (Presidente do Egito de 1970 a 1981) fez uma aproximação a Israel e fez as pazes com Israel. E eu pensei: o Egipto, o país árabe mais populoso, está a fazer um acordo com Israel. Vai ser possível ter paz, vai ser possível ter dois países democráticos: Palestina e Israel.
Enganei-me completamente.
Sempre acredito que seja possível. Não estou a ver líderes com carisma nem estadistas. E precisamos de estadistas, precisamos de um Nelson Mandela. Precisamos de gente com um estatuto acima deste conflito para declarar “não, não vamos continuar este conflito, vamos negociar, vamos fazer cedências, vamos conseguir qualquer coisa, vamos começar o rumo à paz”.
Mas em 2023 e no passado, não temos tido estadistas, nem um Nelson Mandela do lado palestiniano, nem um Nelson Mandela do lado israelita.
Se a ideia de Israel é erradicar o Hamas, quem se seguirá no poder em Gaza? Haverá um vazio? Acha que Israel quer também governar aquele território?
Acho que seria um erro gigantesco de Israel, porque seria outro estado de ocupação total. E nós sabemos da história. Quem aprende História sabe que isso é impossível. É impossível os americanos dominarem o Iraque, é impossível os russos dominarem o Afeganistão e vai ser impossível os israelitas dominarem e criarem paz em Gaza com soldados. Isso não vai acontecer. Seria um erro profundo.
Agora, numa situação em que a paz seja enfraquecida ou destruída, quem é que vai ocupar o poder? Não sei.
A Autoridade Palestiniana? Outro grupo? Não faço a mais pequena ideia e acho que ninguém pode prever. Há situações atuais que ninguém pode prever, ninguém sabe. E mesmo os especialistas, como é que eles vão saber o que vai acontecer se o Hamas for destruído? Duvido muito que alguém tenha uma resposta precisa.
O escritor israelita e judeu David Grossman diz que, depois desta guerra, Israel será muito mais de “direita, militante e racista”. Concorda?
O Grossman sabe melhor do que eu, ele nasceu lá, cresceu lá. Ele percebe muitíssimo melhor do que eu a psicologia dos israelitas. Eu fiquei triste, fiquei desapontado, porque talvez seja verdade que Israel vai ser mais racista, mais fascista, menos democrático.
Vai haver mais dificuldades em criar negociações. Um outro amigo meu israelita, A.B Yehoshua, escritor que não é muito conhecido em Portugal mas que é o grande romancista israelita, dizia-me sempre que queria um Estado palestiniano democrático, queria isso com muita paixão. Porquê? Porque na história da humanidade não temos experiência de dois Estados democráticos entrarem em conflito e entrarem em guerra. Há sempre uma ditadura envolvida.
Então ele queria duas democracias, porque ele pensava que isso iria impossibilitar a continuação do conflito. Acho que, de facto, talvez seja a solução mais justa criar um país democrático palestiniano e reforçar a democracia israelita. Mas não estou a ver isso acontecer nos próximos anos. E David Grossman sabe muito melhor do que eu o que vai acontecer a Israel.
Talvez seja verdade que Israel vai ser mais racista, mais fascista, menos democrático
Eu lamento isso. Para mim, como judeu, ouvir discursos dos judeus racistas é inaceitável. Se há um povo no mundo que não devia demonstrar qualquer sinal de racismo é o povo judeu.
Vê um fim para esta guerra? Consegue imaginar o que vem a seguir?
Talvez daqui a 50 anos ou 70 anos, 80 anos, haja um grande estadista do lado palestiniano ou do lado israelita que vai entrar em contacto com o seu homólogo do outro lado e vão começar negociações e vão chegar à conclusão de que não vale a pena continuar este conflito, que seria muito melhor e mais justo para os dois povos ter paz.
Mas eu penso que vai levar muito tempo, a não ser que haja uma modificação ou alteração enorme da situação geopolítica. Não tenho grande esperança para as próximas décadas.