​Ter fé vs. pensar que devo ter fé
04-01-2019 - 06:55

Quando me ajoelho na missa, há uma parte de mim que recusa a rendição, há uma parte de mim que acha o gesto ridículo, é como se o velho Henrique ateu e defensor do absoluto poder da razão humana estivesse de pé a lançar um sorriso cínico ao Henrique católico.

Senhor, muitos amigos fazem agora perguntas sobre mudanças concretas na minha atitude após a conversão. O que mudou? Qual é a diferença entre o Henrique ateu e o Henrique católico? A parábola que me vem à cabeça, na hora de responder, é o judo. A grande arte do judo é aproveitar a energia do adversário em nosso benefício. É impossível travarmos a energia e movimento do outro lado, mas podemos mudar a direcção desse movimento. Com um leve toque ou torção, transformamos uma acção violenta contra nós num tropeção do adversário, que se vê enleado na sua própria força. Também me vem à cabeça a labuta do agricultor que utiliza a força do rio em seu benefício; ele sabe que é impossível travar a força da água, mas também sabe que é possível desviar o curso do rio ou que, pelo menos, é possível desviar parte dessa energia aquática para uma azenha, para um canal de rega, para uma rede de pesca.

Nesta fase, os meus interlocutores perguntam: mas onde é que está a componente cristã nestas parábolas? Está na ideia de humildade: nós não controlamos tudo; na verdade, controlamos muito pouco. É um acto de rendição assumir que a força do outro vai sempre existir, tal como a força do rio. Não as podemos travar em absoluto. Resta-nos ser humildes e inteligentes no desvio dessa força exterior à nossa razão. Aceitar esta rendição é difícil. Como sabes, Senhor, sinto muitas vezes que estou a mentir quando lhes digo isto. Às vezes sinto-me como o homem que julga que deve ter fé e não o homem que tem fé de facto. Sei que a fé na transcendência cristã é a coisa certa, mas muitas vezes não actuo nem penso de acordo com essa certeza. Se quiseres, tenho fé (uma decisão intelectual), mas falta-me a esperança (uma acção). Uma coisa é perceber que Tu és uma inevitabilidade física e moral; outra coisa, bem diferente, é ver a criação através dessa lente. Uma coisa é perceber que sem Deus não há direito natural e dignidade humana acima da lei do poder. Outra coisa é ver uma flor, uma onda, uma criança, uma tangerina ou o sol através da esperança, deixando-a fluir, deixando que ela contamine o modo de pensar, sentir e escrever.

Quando me ajoelho na missa, há uma parte de mim que recusa a rendição, há uma parte de mim que acha o gesto ridículo, é como se o velho Henrique ateu e defensor do absoluto poder da razão humana estivesse de pé a lançar um sorriso cínico ao Henrique católico que se ajoelha perante a Tua presença, Que menino! Agora acreditas em superstições? Às vezes penso que nunca conseguirei destruir este velho avatar, embora já sinta diferenças enormes, embora já sinta os benefícios do tal judo cristão. No passado, quando a razão e a autonomia me falhavam, tinha um certo gosto masoquista em marinar na melancolia. Rendia-me ao torpor, gostava de andar na orla exterior da caldeia do vulcão, caindo nela muitas vezes. Agora, não. Reajo, desço de imediato dessa orla lunar. Se estou mal por alguma razão, não me refugio na minha timidez de sempre, procuro contacto humano. Se vejo que a vizinha está triste, abro a janela e ajudo-a com a roupa presa no arame do estendal, ou ofereço-lhe parte das tangerinas da horta do meu pai. Se a senhora da loja está triste porque não tem vendido nada, entro lá com as miúdas e faço um pouco de conversa, compro qualquer coisa.

Estes pequenos gestos são curto-circuitos que reiniciam o sistema, são ignições que aceleram a convalescença. Com a Tua ajuda, utilizo a tristeza em meu benefício, transformando-a num gesto de empatia em relação aos outros e sobretudo em relação ao meu velho eu, que, nestas alturas, perde aquele sorriso cínico e pós-moderninho. Vale a pena, Senhor.