Eleições americanas. Novembro pode ser apenas o princípio de uma longa batalha
31-07-2020 - 01:04
 • Joseph Ax (Reuters)

Em ano de pandemia, e depois de o próprio Presidente ter sugerido adiar o escrutínio, há todo um conjunto de imponderáveis que podem fazer descarrilar a eleição presidencial no país mais poderoso do mundo.

A sugestão de Donald Trump de que as eleições americanas sejam adiadas por perigo de fraude eleitoral foram imediatamente rejeitadas pelos legisladores e por especialistas jurídicos, mas levantam o espetro de uma eleição muito disputada que poderá precisar de semanas, ou até meses, para ser decidida.

Eis alguns dos possíveis cenários, e como se poderão desenrolar:

Atraso nos resultados

Segundo a Constituição, apenas o Congresso tem o poder de alterar a data da eleição e com os democratas em maioria na Câmara dos Representantes as possibilidades de isso acontecer são praticamente nulas.

Mas o uso generalizado do voto por correspondência, devido ao cenário de pandemia, deverá causar um atraso significante no apuramento dos resultados. Vários estados permitem que os votos cheguem já depois do dia da eleição e os envelopes têm de ser abertos à mão, para se verificar as assinaturas. Já este ano algumas eleições primárias realizadas maioritariamente por correspondência levaram semanas a resolver.

Os democratas temem que este tipo de atraso seja terreno fértil para acusações de fraude.

Uma fonte próxima da campanha de Biden diz que a equipa do candidato democrata está a preparar-se para um cenário de pesadelo, em que Trump declara a vitória por se encontrar na frente na contagem dos votos presenciais nos principais Estados, logo no dia 3 de novembro, mas à medida que são contados os votos por correspondência de locais urbanos com maior densidade populacional essa vantagem desaparece, com o Presidente a alegar que a eleição lhe está a ser roubada.

Os tribunais

As leis sobre o voto por correspondência variam de estado para estado – confirmação de assinaturas, marcas dos correios, prazos – e qualquer uma delas pode levar a um processo por parte de democratas ou republicanos sobre quais os boletins que devem ser contabilizados.

As primárias deste ano também revelaram algumas fraquezas e desafios em entregar os boletins a tempo, uma vez que os responsáveis pela contagem e os próprios serviços de correios foram apanhados desprevenidos pela quantidade.

Eleitores que cumpram todas as recomendações, mas que vejam os seus boletins chegar tarde, sem ter qualquer responsabilidade por isso, podem na prática perder o seu direito a votar, o que também pode levar a processos em Estados em que a corrida se decide por uma margem curta.

Estes processos, começando nos estados individuais, poderão eventualmente chegar ao Supremo Tribunal, como aconteceu em 2000, quando George W. Bush venceu o democrata Al Gore por meros 537 votos na Florida, depois de o tribunal ter impedido uma recontagem.

O tribunal tem um historial de permissividade com restrições ao voto, mas isso não implica que os juízes pendam para o Trump no caso de uma disputa eleitoral, dizem os especialistas.

Colégio Eleitoral

Segundo alguns especialistas, um cenário ainda mais preocupante é uma disputa no Colégio Eleitoral.

De acordo com a Constituição, o Presidente não é eleito por voto popular, mas por um Colégio Eleitoral de 538 eleitores, em representação dos seus estados.

Na prática, o candidato que vence o voto popular em cada Estado fica com os eleitores do mesmo, cujo número varia de Estado para Estado, consoante a população. O governador de cada Estado certifica o voto dos seus eleitores e submete-os ao Congresso estadual para aprovação. Este ano esse ato está marcado para o dia 14 de dezembro.

Num livro publicado recentemente, o professor de direito de Amherst, Lawrence Douglas, descreve um cenário em que os resultados de três estados cruciais – Michigan, Wisconsin e Pensilvânia – são tão próximos que ambos os lados declaram vitória.

As legislaturas, de maioria republicana, encorajadas por Trump, emitem os seus próprios certificados enquanto os governadores democratas endossam Biden.

Não seria a primeira vez que os Estados submetem certificados contraditórios. O caso mais notável foi em 1876, quando a eleição demorou esses a ser resolvida. A disputa só foi resolvida quando representantes dos partidos chegaram a um acordo que deu ao republicano Rutherford B. Hayes a presidência em troca da retirada dos estados do sul de tropas federais que estavam lá desde o fim da Guerra Civil. Essa medida contribuiu para um período prolongado de segregação racial na região.

Recentemente o Supremo Tribunal decretou que os Estados podem punir um eleitor que vote em alguém que não venceu no seu Estado. Mas há mais de uma dúzia de Estados que não têm qualquer lei contra os chamados “eleitores infiéis”.

A lei federal diz que cabe ao congresso resolver disputas no Colégio Eleitoral, e não ao Supremo Tribunal, mas a lei é ambígua e um congresso dividido pode demorar chegar a um acordo.

Recurso às Forças Armadas?

Alguns especialistas dizem que temem os danos de longo prazo para as regras democráticas caso Trump se recuse a reconhecer uma vitória de Biden, mesmo que este seja declarado o vencedor.

Existe uma tradição inviolada de sucessão pacífica na democracia americana.

Biden chegou a sugerir que talvez fosse necessário Trump ser retirado da Casa Branca por militares, caso se recuse a sair por sua livre vontade. Quem fizer o juramento para assumir a presidência no dia 20 de janeiro comandará tanto as Forças Armadas como as agências de segurança.

Mas a retórica do atual Presidente poderá ainda deixar milhões dos seus apoiantes convictos de que a eleição foi fraudulenta, levando a ainda mais contestação social, depois de meses de protestos sobre questões raciais.

“Este é mais um exemplo de o Presidente a procurar deslegitimar o processo eleitoral, antes mesmo de ele acontecer”, diz Justin Levitt, professor de direito constitucional na Universidade de Loyola Marymount, referindo-se ao mais recente tweet de Trump. “Isso é profundamente desestabilizador”.