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Entrevista Renascença

Djaimilia Pereira de Almeida: “Começamos a mentir, assim que começamos a contar”

10 jan, 2025 - 15:16 • Maria João Costa

A autora que acaba de vencer o Prémio Vergílio Ferreira lançou recentemente “Livro da Doença”. Em entrevista ao Ensaio Geral, Djaimilia Pereira de Almeida explica que é um livro que nasceu depois da morte do pai. Embora a “experiência do luto” seja sua, assume que o livro “não é assim tão biográfico”.

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Numa das linhas de “Livro da Doença”(ed. Relógio d'Água), Djaimilia Pereira de Almeida interroga-se: “Quando é que começa um livro?”. Devolvemos-lhe a pergunta. A autora que venceu esta semana o Prémio Vergílio Ferreira admite que há livros que “começam muitos anos antes de os começar a escrever”.

O “Livro da Doença” talvez seja um desses casos, já que a autora tem textos anteriores à morte do seu pai, o facto que a levou a escrever e a explora na obra o sonho do seu pai de, também ele, escrever um livro. “Resolvi fazer um livro sobre o nada que me tinha restado desse outro livro, numa tentativa talvez de prolongá-lo ou de conversar com ele um bocadinho”, refere a autora.

Embora admita que o Livro da Doença “não é assim tão biográfico”, Djaimilia Pereira de Almeida explica que quis tratar o “mal”, essa “espécie de condição geral da humanidade” e não tanto uma doença especifica. Nesta conversa com o Ensaio Geral da Renascença, a escritora admite que este “Livro da Doença” é “uma espécie de prova de vida”.

“Quando começa um livro?” É uma das perguntas levantada neste “Livro da Doença”. Como é que ele começou?

De facto, essa é uma questão importante porque às vezes parece que os livros começam muitos anos antes de os começarmos a escrever.

Neste caso, este livro começou, posso dizer, mais ou menos por altura da pandemia em 2021, em janeiro, fevereiro, março.

Nessa primavera que foi uma das primaveras mais violentas da Covid-19, foi a altura em que eu perdi o meu pai. Por isso ele terá começado nessa altura embora haja textos deste livro que são muito mais antigos do que essa data.

Este é um livro sobre um livro que acabou por não ser escrito pelo seu pai?

Exatamente. É isso mesmo. Perante a morte do meu pai eu questionei-me, como é natural quando estas coisas acontecem, o que é que me tinha ficado? o que é que me tinha sobrado? No fundo estava à procura daquilo a que me poderia agarrar.

E o meu pai teve esse projeto durante muitos anos, de fazer um livro que era uma espécie de livro total, em que contaria toda a sua vida, as suas aventuras, etc.

Foi um homem que viveu várias vidas e na sua morte eu deparei-me com este projeto do qual me tinha ficado muito pouco.

Resolvi fazer um livro sobre o nada que me tinha restado desse outro livro, numa tentativa talvez de prolongá-lo, ou de conversar com ele um bocadinho, pensando que talvez conversar com os sonhos de uma pessoa é conversar com ela, para além de qualquer final.

Quando escreve no livro que “escreve para resgatar uma singularidade e não para dar testemunho” é isso, ou seja, escreveu este livro para resgatar a memória do seu pai ou as memórias da sua infância

Acho que no fundo essa frase quer dizer que este livro é uma tentativa de resgatar aquilo que haveria de único nas nossas vidas.

Mais do que dar testemunho de um sofrimento, ou seja, do que for, é tentar recompor, se é que isso é possível, aquilo que era único a respeito das nossas vidas.

Isto é uma inquietação que eu tenho muitas vezes. Pensar até que ponto uma pessoa é, ou não, única, é, ou não, singular.

Até que ponto é que as nossas vidas têm alguma coisa de singular e muitas vezes chego à conclusão que é aquilo em que nos confundimos com os outros, aquilo que existe em nós, que é partilhado por mais pessoas.

Então este livro, ao tentar resgatar uma singularidade, vai também ao encontro, acho eu de uma condição que é uma condição muito geral nos seres humanos.

Tem a ver com esta coisa da doença. Não é uma doença específica, mas a doença como uma espécie de condição geral da humanidade.

Há pouco falavas da questão da doença e daí o título também Livre da Doença. Podemos aqui falar ou identificar várias doenças.

No livro fala de algumas doenças de saúde mental, mas também descreve situações por exemplo de violência em Cabo Delgado, em zonas de Angola ou Cabo Verde. São tudo doenças, a violência do mundo atual ou a ausência de saúde mental?

A doença aqui, é mais do que a doença de um sujeito, ou mais do que a doença como a condição que nos leva a ser tratados num hospital.

O livro fala acerca da doença como uma condição de estar vivo. A doença naquilo que ela tem de comum nas nossas vidas. E por isso a doença tanto pode ser uma doença específica de que se padece, mas é também a doença como... Eu não lhe queria chamar um “mal”, é a palavra que me está a virar a cabeça, é um “mal”.

Mas é a doença como uma condição inescapável. Acho que o livro é escrito numa tentativa de vencer sobre essa condição. É um livro, para mim, que encaro como uma espécie de prova de vida independentemente dessa condição.

Faz uma certa catarse com este livro, o luto do seu pai? É o seu livro mais biográfico ou há aqui autoficção também?

Não é assim tão biográfico. A experiência do luto é evidentemente uma experiência minha, mas nunca deixo de pensar que sempre que uma pessoa coloca por escrito aquilo que está a sentir, e por mais que tente ser fiel àquilo que sente, a partir do momento em que fazemos o esforço de o colocar por escrito, e a partir do momento em que compomos a partir daí uma narrativa, inevitavelmente começamos a falsear a realidade.

E por isso sinto esta narradora como uma narradora bastante diferente de mim. Porque o esforço de escrever sobre factos instabiliza esses factos ao ponto de eles já não corresponderem à verdade. E, por isso, basta que seja dentro de um livro para não ser verdade.

É um jogo com o leitor?

Sim, é um jogo. Não é um jogo no sentido de estar a querer enganar as pessoas. Não é nesse sentido.

Tem a ver com a própria natureza da literatura e aquilo que é necessário para tentar transformar coisas que sentimos, em coisas que lemos, em coisas que podem ser lidas por outras pessoas.

Há muita coisa que se perde nesse caminho, nesse processo. E inevitavelmente há também coisas que acrescentamos. Coisas que não aconteceram e que acrescentamos.

Começamos a mentir assim que começamos a contar. Pelas melhores razões. Não é pelas piores razões.

Tal como quando as nossas avós nos contavam histórias. As histórias nunca eram iguais uns dias para os outros.

E a cada dia, a avó acrescenta um pormenor diferente à história que está a contar à criança.

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