29 nov, 2024 - 07:00 • Maria João Costa
Foi um desafio do festival Belém Soundcheck. Em março, Camané subiu ao palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém para um concerto em que interpretou um repertório totalmente dedicado a José Mário Branco. A noite, sem que Camané o esperasse, ficou registada e o disco sai esta sexta-feira.
Em entrevista ao programa Ensaio Geral, da Renascença, o fadista fala da ligação que teve ao longo de mais de 20 anos com o músico. Não falavam de politica, revela. Camané considera que José Mário Branco é o “autor” da sua sonoridade.
No disco, além das canções interpretadas ao vivo, estão também as gravações de algumas sessões de estúdio em que José Mário Branco partilha os seus ensinamentos com Camané. A responsável de os dois se terem cruzado é a letrista Manuela de Freitas, mas Aldina Duarte também deu uma ajuda.
“Camané ao Vivo no CCB - Homenagem a José Mário Branco” é um disco que nasceu de um concerto especial?
No fundo, isto foi uma homenagem aos temas que o Zé Mário, ao longo do tempo em que trabalhámos juntos, fez para mim. Esses temas são o grosso do concerto. Existem alguns temas que fazem parte do reportório do Zé Mário, que eu gostei muito de os cantar, como o "Inquietação", os "Imigrantes da Quarta Dimensão" e também outros temas. Mas o grosso do concerto são realmente os temas que ele fez para mim, porque trabalhámos juntos durante 20 e tal anos.
Não era suposto ser um disco. Foi um concerto no CCB, de homenagem ao Zé Mário, mas, mais tarde, soube que tinha sido gravado e sai agora em disco.
Como é que a vossa relação começou, ainda se lembra?
Bem, a Manuela de Freitas, que era a mulher do Zé Mário, com quem vivia há muitos anos, ia-me ouvir cantar ao Faia de vez em quando, à noite.
E mais tarde a Aldina Duarte organizou umas noites de fado no Teatro da Comuna, em que o Zé Mário também ia ouvir-me. E, aos poucos, começámos a falar sobre fado. O Zé Mário já se tinha rendido ao fado e gostava imenso.
Ele já tinha produzido um ou dois discos do Carlos do Carmo. E comecei a falar com ele e, mais tarde, até lhe pedi se ele queria produzir um disco meu. E isto começou a partir de 1993.
O que considera que José Mário Branco trouxe à sua carreira?
Eu já tinha um percurso no fado bastante grande, porque tinha umas características que tinham a ver com o fado tradicional. Tinha começado a cantar muito cedo, desde criança, aliás. Portanto, ele ajudou-me a desenvolver aquilo tudo que eu tinha aprendido.
E criou uma sonoridade melódica, e não só, de arranjos nos fados tradicionais. Criou uma sonoridade incrível nos meus discos, com os quais eu me identificava muito e, depois, também fez alguns fados novos para mim, que são esses que estão no disco.
Mas a sonoridade que ele criou, a forma como ele fazia os arranjos nos fados tradicionais e também nos fados novos que fez para mim também manteve essa sonoridade.
Foi um trabalho de equipa virtuoso.
Depois em todos os aspetos interpretativos, de escolhas. Ele ajudou-me a transmitir o registo emocional de cada poema.
Também as escolhas da poesia. Ele, com a Manuela Freitas, ajudou-me a escolher poetas que eu podia introduzir nos fados tradicionais, desde poetas que normalmente não eram cantados em fados como o Fernando Pessoa, por exemplo.
Ele ajudou-me a escolher poesias, quadras, quintilhas que faziam sentido no fado tradicional. Tudo isso, acho que foi um conjunto. Acima de tudo, ele conseguiu criar a minha sonoridade durante 20 e tal anos.
Falavam sobretudo de fado ou havia outros temas?
Acho que essencialmente era fado. Havia essa ligação. Nunca foi uma relação política, por exemplo. Não foi. Acho que o mais essencial na nossa ligação teve a ver com o fado.
Há uma petição que pede que a obra de José Mário Branco seja declarada de interesse nacional. Como vê essa petição?
Eu vejo isso da melhor forma. O José Mário era um músico que estava muito para além. Aliás, quando me diziam que o José Mário era um cantor de intervenção, dava-me vontade de rir, porque ele é muito mais do que isso.