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Entrevista a Ricardo Conde

Remoção do lixo espacial vai acabar "na fatura da água ou da luz"

13 abr, 2023 - 07:03 • Sandra Afonso

O aviso é do presidente da Agência Espacial Portuguesa que, em entrevista à Renascença, levanta ainda o véu sobre os planos para o Centro Tecnológico Espacial em Santa Maria, já para este ano, e antecipa em quatro anos, para 2026, a data em que Portugal se torna uma “Nação Espacial”.

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O presidente da Agência Espacial Portuguesa, Ricardo Conde, está quinta-feira na Guiana Francesa a representar Portugal no lançamento na Agência Espacial Europeia (ESA) do satélite Juice, com tecnologia feita em terras lusas e um diretor de Operações de Voo português, para estudar Júpiter e três das suas maiores luas.

Este é só mais um exemplo da capacidade do país nesta área. O presidente da Agência Espacial Portuguesa explica à Renascença como pode Portugal beneficiar com o espaço e antecipa um "boom" do setor no país, nos próximos quatro anos.

Por tudo isto, Ricardo Conde acredita que em 2026, dentro de três anos, Portugal deverá tornar-se uma Nação Espacial. Ou seja, reduz em quatro anos o prazo inicialmente avançado (2030).

Nesta entrevista, fala ainda dos projetos a curto e médio prazo, que passam obrigatoriamente pelo Centro Tecnológico Espacial, onde em breve serão realizados os primeiros voos suborbitais.

Deixa ainda um aviso: o lixo espacial é hoje um problema internacional, que exige uma solução conjunta e a fatura vai acabar por ser cobrada aos contribuintes.

Como é que o espaço se transformou numa lixeira e uma armadilha para futuras missões? E como se resolve este problema?

Antigamente, os satélites tinham um tempo de vida que podia ser estendido, sensivelmente, até oito ou dez anos, e depois tornam-se monos, tornam-se frigoríficos a orbitar o planeta.

Depois há o problema das colisões e há um exponencial de criação de lixo, de "debris", e isto torna o ambiente espacial absolutamente imprevisível para a ambição humana da “space explorace”.

Um dano provocado num satélite pode, eventualmente, anular uma missão e, obviamente, matar as pessoas.

Exige uma solução conjunta?

Tornou-se um problema que apela à cooperação internacional. É por isso que hoje se fala muito na coordenação do tráfico espacial, no sentido diferente daquilo que é a coordenação do transporte aéreo.

Por essa razão, nesta política de sustentabilidade em que a Europa é líder, está-se a trabalhar numa política de "lixo espacial zero até 2030" e entramos também aqui numa economia circular.

Não deve haver a obrigação de recolha por quem coloca os satélites ou outros equipamentos?

Isso está relacionado com as leis espaciais dos países, porque ninguém lança um satélite sem estar licenciado e, no processo de licenciamento, tem de haver uma parte de reentrada, que se assegure que nada permaneça em órbita.

Aqui há uma dimensão absolutamente fascinante: isto é válido para o futuro. Então, o que fazemos com aquilo que é do passado e nos levou a este ponto? Não se admirem que, daqui a uns anos, nos apareça na conta da luz e na conta da água uma taxa de resíduos espaciais, como hoje há uma taxa de resíduos sólidos.

Porque há e vai haver uma componente pública de remoção do lixo espacial e alguém tem de pagar a fatura. E quem é que paga a fatura? Os contribuintes. O financiamento, que é tão grande, para a remoção do lixo espacial, eventualmente pode ser financiado com uma taxa pública.

Esta possibilidade já está em discussão?

É o benefício de termos no nosso telemóvel toda uma tecnologia que deriva também de tecnologias do espaço. Está-se a equacionar isto, pagar para de facto termos um espaço limpo e em que há aqui a perspetiva de nós termos sistemas que providenciam novos serviços, em particular, os serviços omnipresentes das comunicações.

Um dos grandes problemas que nós temos hoje nas comunicações, qual é? Nós nem percebemos, porque no espaço europeu temos o roaming, uma conquista enorme, brutal. Saímos do espaço comunitário e toda a agente se apercebe do problema das comunicações.

Os operadores, a uma escala global, são barreiras que vão ser esbatidas e a comunicação presente é algo que nós temos que olhar como um benefício, que vai trazer-nos responsabilidades, eventualmente, de assegurarmos que o espaço exterior tem que ser limpo, para continuarmos a usufruir.

A nível nacional, que novidades podemos esperar para este ano? Há uma grande aposta no Centro Tecnológico Espacial em Santa Maria. Como é que está o projeto?

Nós demoramos sensivelmente 22 anos a construir o nosso ecossistema. Construímos competências que hoje nos permitem pensar nos caminhos a seguir, mas também temos de tirar proveito daquilo que é o potencial do país.

Portugal pode fazer tudo no espaço? Não, não pode. Portugal pode ter aqui uma dimensão de atuação em vários setores? Pode. E quais são eles? O primeiro é o domínio da sustentabilidade, usar o espaço e a informação do espaço para gerir o nosso território: a dimensão marítima, a dimensão de problemas terrestres como os fogos, como a seca. O espaço dá resposta.

Na prática, o que pode um país como Portugal fazer?

Criar uma dimensão de política de dados. Os dados do espaço são caros, têm barreiras tecnológicas. Como é que se removem para desenvolvermos aplicações? Através de uma constelação de satélites em Portugal.

Até 2026, Portugal vai ter 20 satélites a voar, essa é a grande linha. Vamos apostar numa componente de satélites "upstream", que vai criar também em Portugal uma pequena agenda industrial: integradores de satélites.

Segunda noção: qual é outro potencial de Portugal? É utilizar os recursos que vão dormir a casa, os recursos humanos. Neste momento Portugal está capacitado para inovar em algumas áreas, uma delas é o lixo espacial.

Dentro do lixo espacial foi criado também um projeto, no âmbito do Programa de Recuperação e Resiliência. Apoiamos várias empresas e uma em particular, para que seja um líder internacional na monitorização e inteligência artificial para manobras no espaço.

A terceira noção é o potencial geográfico. E aqui aparece o Centro Tecnológico Espacial.

Este é o projeto bandeira do país?

Portugal não quer ter só um centro de lançamentos. Isso é pobre, é providenciarmos espaço. Não é isso que queremos. Nós queremos no Centro Tecnológico Espacial desenvolver as capacidades, o ecossistema.

Santa Maria tem uma pequena infraestrutura de comunicações onde queremos fazer o teleporto, o centro tecnológico com a capacidade de acesso e o retorno do espaço.

Isto, em si, não é o "space port", é uma capacidade que vai ancorar e atrair as empresas para trabalharem várias dinâmicas. Essas dinâmicas têm um ponto de partida, uma semente, que é o retorno do espaço. E vamos aproveitar as nossas possibilidades de Santa Maria ser um centro onde vai receber o "space raider", ou seja, um veículo reutilizável europeu que vai aterrar na Guiana Francesa e em Santa Maria, os dois sítios escolhidos, para capitalizar outras experiências.

Por exemplo?

Este ano vamos lançar os primeiros voos suborbitais, usando o "backbone", ou seja, o Centro para criarmos outras atividades. O primeiro passo são os lançamentos suborbitais.

Vai haver notícias fantásticas. Vamos em força trabalhar na componente do acesso ao espaço, neste grande Centro Tecnológico que pretende afirmar Portugal na Europa.


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Ao nível dos voos orbitais?

A nível dos voos orbitais. Mas aqui o processo e gradual, é um processo de retorno no espaço, voos suborbitais, componentes hipersónicas, plataformas de alta altitude e voos orbitais. Portugal está a posicionar-se, tirando partido de opções e do potencial que o país tem em termos geográficos.

No final do ano passado, a indústria aeroespacial já empregava 18.000 pessoas em Portugal. Tendo em conta os planos que acaba de apresentar, há margem para escalar bastante este potencial de empregabilidade?

Claro que sim. Temos na agência um programa muito, muito forte para apostar na juventude, motivá-los. Criámos aqui alguns projetos fantásticos: os lançamentos de roquetes que acontecem em Ponte de Sor, o "Astronauta por um dia" que já vai na segunda edição, para motivar os estudantes nas áreas das tecnologias, das matemáticas, das ciências.

Isto faz-se com massa crítica e Portugal não tem massa crítica para estes projetos que quer fazer. Isso é um problema, mas também uma oportunidade. E hoje já se vê que estes projetos estão a chamar a atenção de pessoas que estão fora, a nossa diáspora.

Nos próximos quatro anos vamos ter um "boom" de empresas a trabalhar e um boom de crescimento no setor.

A segunda edição do "astronauta por um dia" traz novidades?

Este ano esperamos uma avalanche de candidaturas e ainda bem. Vamos estar à altura de responder.


Ultrapassaram as 400 inscrições na primeira edição, esperam superar este número?

Chegámos quase aos 500. Não vou dizer números, mas vão ser para cima de mil, 1.500. Vai estar no dia a dia das conversas das pessoas. É um evento extraordinário, com condições absolutamente únicas.

Não é só o voo, é todo um ambiente que estamos a preparar para o grande momento que será no dia 3 de setembro.

Asseguramos que isto seja um vetor de continuidade e por aqui lançamos uma rede brutal de Embaixadores sobre o espaço. Hoje temos a certeza que os miúdos selecionados no ano passado foram bem selecionados, são fantásticos. É vê-los: o entusiasmo, como transmitem a mensagem, vão ser nossos colegas no futuro.

Admitiu há tempos que tinha como ambição que Portugal se tornasse uma Nação Espacial em 2030. Mantém esta meta?

Arriscaria a dizer que isso pode ser possível em 2026.

Nós estamos num momento de transformação. Estas iniciativas que estamos a lançar vão dar resultados muito antes disso. A consolidação dessas iniciativas é que poderá transformar Portugal, de facto, num ator importante nas tecnologias do espaço.

Este setor já está no interesse dos nossos governos e cada vez mais. A prova disto é o compromisso do governo que nos ajudou a construir um instrumento de política pública muito importante, que é a nossa contribuição na ESA (Agência Espacial Europeia). Fizemos a maior contribuição de sempre, à nossa escala. Mas o setor ainda é pequeno.

É preciso mais dinheiro?

Nos últimos quatro anos duplicamos o investimento neste setor. Nos próximos quatro anos vamos, talvez, multiplicar por quatro. E quando este setor, digo eu a brincar, atingir mais ou menos aquilo que é o setor dos vinhos, ou seja, talvez 500 milhões de euros por ano, já é demasiado grande para não se tornar uma coisa séria no panorama tecnológico e de entrega de soluções.

Penso que chegaremos a esse patamar em 2026, 2027, nessa altura atingiremos o objetivo de tornar Portugal uma nação espacial, em benefício das pessoas e da sustentabilidade.

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