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Carminho. Ir à casa de fados “é uma necessidade” de “ir beber à fonte”

03 mar, 2023 - 09:04 • Maria João Costa

“Portuguesa” é o novo disco de Carminho que chega sexta-feira ao mercado. O álbum foi produzido pela própria. A fadista diz que o álbum é a sua “visão pessoal sobre a poesia portuguesa” e a língua. Canta poemas de Manuel Alegre, Sophia, David Mourão-Ferreira, mas também canções de Marcelo Caetano, Luísa Sobral ou Joana Espadinha.

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É o sexto disco de originais. Carminho está a lançar “Portuguesa”, um álbum onde apresenta uma “visão pessoal sobre a poesia portuguesa, a língua, a identidade da música portuguesa e do Fado em particular”.

Tal como no disco anterior, “Maria”, é Carminho que assume a produção do disco que, confessa, foi gravado das 10h às seis da tarde em estúdio, embora remeta para o ambiente da noite e da casa de fados.

É de resto, na casa de fados que admite continuar a ter “uma necessidade” de frequentar, porque explica, vai “beber à fonte”. Nesta entrevista à Renascença, a fadista conta a história particular de um poema de Manuel Alegre que musicou e gravou neste disco. “Soneto” estava perdido dentro de uma caixa que a fadista Beatriz da Conceição deixou de herança a Carminho.

Este disco "Portuguesa" nasceu durante o período da pandemia, mas é um disco de identidade e ao mesmo tempo de herança daquilo que é a tradição do Fado. Como é que o caracteriza no seu percurso?

Eu caracterizo este disco "Portuguesa" como um exercício da prática do Fado. Acredito que o Fado é uma língua viva e que tem de ser praticada. Nesse sentido, foi a minha escola, não é? A minha mãe é fadista. Todo o percurso em casa, não só de ouvir, porque a prática passa por este misto de audição, mesmo antes de poderes aplicar. Dessa vertigem da coragem de te lançares para o primeiro fado que cantas, portanto, essas memórias estão todas muito frescas na minha vida e na minha cabeça.

Depois a Casa de Fados que os meus pais tiveram e que eu frequentei muito, e toda relação com os artistas, com a Beatriz da Conceição, com a Amália, que tive o prazer de conhecer também e com muitos outros, como o Camané. E essa prática é por si só, o exercício do Fado e eu acho que é muito recompensador pensar que este género e de tal maneira rico que na sua simples prática, já o estás a transformar.

Não que eu aja por transformação. Ajo pela prática, mas, é isso que faz as línguas andarem no tempo e não morrerem. É continuares a fazê-lo.

É curioso que compare a língua com o Fado. O Fado é a sua língua?

É! Costumo dizer que sim, porque é a forma que tenho de me expressar. É aquela com que me identifico e que ainda por cima tenho o prazer e o privilégio de o fazer em português. Portanto, as duas línguas estão irremediavelmente juntas nesta prática

O disco é também sobre a língua portuguesa e a sua riqueza, nomeadamente poética?

O disco “Portuguesa” é essa visão, esse olhar meu, e pessoal, sobre a poesia portuguesa, sobre a língua. Sobre a identidade da música portuguesa e do Fado em particular, a mulher, eu, de alguma maneira, porque a mulher não é uma mulher, são muitas. E sem dúvida nenhuma ter um espírito crítico e de alguma maneira reflexivo sobre o repertório e a sua construção.

Pomos o disco a tocar. Este repertório remete-nos para aquilo que é também a herança de Amália, de cantar os grandes poetas. No "Portuguesa" temos por exemplo Manuel Alegre. Que poema é este que Alegre entregou a Carminho?

A que alegria imensa esse poema! Falou da Amália, e eu também falo dela e indiscutivelmente falo do Marceneiro. Antes de responder à pergunta, sinto que esses antigos e essas grandes figuras do Fado destacam-se por variadíssimas razões, mas sobretudo porque eles construíam o seu repertório original.

Deram um contributo muito significativo para a continuação do repertório que hoje conhecemos no Fado. O Marceneiro compunha os seus fados tradicionais, colaborava com outros artistas, poetas e compositores como Joaquim Pimentel e outros mais, para fazer o seu repertório. Mas ele tinha essa vontade, preocupação e essa conduta de cantar aquilo que compunha.

No caso da Amália, sabemos que ela escreveu muito, mas nem é pelo facto de ter sido ela, mas sim pela coragem de ter ido buscar os poetas, os compositores, de fazer um disco só de Carlos Gonçalves, a cantar os poemas que ela própria escreveu. É de uma reinvenção do repertório, de uma ginástica destas combinações possíveis que o reportório do fado se constrói.

É disso que se faz o Fado?

Constrói-se através destas combinações de poemas, da estrutura. Temos aqui algumas balizas em termos de formais na estrutura poética, na forma como se compõe o fado tradicional neste caso, mas depois há toda uma possibilidade usando estas regras para novas combinações e novos resultados.

Como foi o caso do poema de Manuel Alegre?

Sinto que os poemas nos tocam particularmente por várias razões, mas também pela forma como eles chegam até nós. E este poema é talvez o mais especial de todos.

A Beatriz da Conceição mostrou a vontade de que eu ficasse com uma caixa que lhe pertencia e depois dela partir foi-me entregue essa caixa que tinha muitos poemas, muitas folhas escritas por ela, muita coisa que na verdade já existia. Percebeu-se a prática que ela tinha de escrever e reescrever os próprios Fados que cantava. Não sei se no exercício também de descobrir a sua interpretação.

E no meio deles estava um poema de 1966, portanto, já tinha estes anos todo, do Manuel Alegre, que se chama "Soneto". O primeiro verso é: "Preciso saber porque se é triste". Provavelmente fazia parte das escolhas dela para cantar. Eu contei esta história ao Manuel Alegre e mostrei-lhe a canção que tinha feito, porque automaticamente fiz um Fado para este poema.

Pedi-lhe autorização e ele respondeu-me que ficou muito feliz com a história em si. O facto de eu ter recebido este poema através, não foi das mãos, mas do talento da Beatriz da Conceição e da intuição dela.

E ficou surpreso porque disse, este poema realmente faz parte de um livro de onde partiram muitas canções e Fados, e este poema nunca foi cantado. "Ele estava à sua espera, Carminho! A Beatriz fez com que você o cantasse!", e eu fiquei honrada com o comentário dele. E o que mais me toca também para além da presença, dele e de o poder cantar é o facto da Beatriz, mesmo depois de partir continuar a conduzir-me! Foi o que ela fez e a ajudar-me a seguir o caminho certo.

Ela fez-me chorar muitas vezes, exatamente por me querer ajudar a ver o caminho. E, ela fê-lo, e, portanto, foi muito significativo, muito tocante, muito emocionante este poema.

Temos também no disco a Sophia, o David Mourão Ferreira, mas depois entram aqui também outros compositores, outros músicos seus contemporâneos, como a Luísa Sobral ou o Marcelo Camelo. Que energia é que eles trazem? Que renovação é que trazem àquilo que é tão tradicional como o Fado?

Eu sinto que as canções acabam por ter de vencer. Mais do que propriamente se é deste ou daquele compositor. O facto de ter recebido estas canções destes compositores fantásticos, quando olho para trás aquilo com que me deparo, é com um grupo de que eu sou completamente fã e admiradora. A verdade é que o conjunto do repertório venceu assim.

Havia outras canções que estavam na calha, outras que foram mesmo gravadas, e não aconteceu, porque elas não faziam sentido num conjunto, num combo, numa intenção, porque isto também é uma intenção minha fazer este disco. Uma intenção para mim! Não têm qualquer tipo de intencionalidade.

E o que eles trazem ao disco?

Acho que trazem uma nova vida, mas apesar de eles serem novos e contemporâneos, e sentimos que eles trazem qualquer coisa de contemporâneo, o que os une, na minha perspetiva, é a forma delicada e própria, como eles tratam a língua portuguesa e como eles escrevem. Talvez seja isso que me atrai em cada um deles.

Foi a Carminho que produziu o disco, como é que foi esse trabalho?

Este disco vem muito no seguimento do anterior, "Maria". Queria recuperar memórias antigas e de reflexões muito emocionais sobre a minha experiência com o Fado quando tinha, 3, 4 anos. E então era difícil escolher alguém que viesse interpretar aquilo que eu nem sabia bem o que era! Então, eu produzi nesse sentido intuitivo e natural.

Neste caso, por causa da experiência que ganhei com essa produção, tive vontade de explorar outras coisas, porque também fui aprendendo e fui ganhando esse bicho, essa vontade.

Eu, em vez, de esperar por um produtor e fazer esperar o disco, comecei a sentir que as canções começavam a ganhar forma e começavam a ficar prontas dentro de mim, começavam a ficar concluídas na minha cabeça, e, então eu pensei, vou fazer uma residência artística de 10 dias, vou juntar os músicos e vamos estar das 10h às 6 da tarde, todos os dias em estúdio. Vou aplicar estas ideias e depois vou ver o resultado e vou perceber se ficou uma boa pré-produção para encaminhar para outro produtor ou o que é que acontece?

Com essa liberdade, juntamos todos numa sala, sem biombos, sem divisões, sem nada, porque isso traz também a parte do processo da própria produção. Se tu decides isolar os músicos, vais ter uma possibilidade de ter fados bastante mais limpos e bem tocados, mas perde-se a espontaneidade, perde-se o silêncio, perde-se uma data de outras coisas que ficcionadas não são tão atingíveis.

Por outro lado, se estamos todos juntos, se alguém tosse imagina, fica na gravação, portanto. Tem de se repetir! Isto tudo é muito interessante de pensar, que caminhos é que os artistas, os músicos e os produtores decidem tomar no momento em que iniciam um processo.

Aqui, neste disco não aconteceu essa produção toda, foi mais livre?

Não tinha grande pretensão. Eu arrisquei logo nesse processo. A verdade é que ao terceiro ou quarto dia já estava a sentir que isto era o disco. Estava a começar a ser o disco. Já não havia hipótese, já não se volta para trás. Estamos a explorar.

Produzir é escolher e é continuar essa prática do Fado. Foi isso que eu fiz, foi praticar o Fado. Mesmo estes instrumentos que surgem novos ao combo tradicional do fado, eles vêm servir um propósito da prática do Fado.

Fui à procura de perceber que brechas, nesta prática constante, de experimentação é que eu tinha. É praticando, praticando que tu de repente és deparado com um lugar, onde pensas, aqui posso preencher este espaço com uma outra coisa que serve mesmo propósito, mas que vem de outro lugar.

E o Fado acontece?

E o Fado acontece, na mesma. Exatamente! É exatamente isso, porque o propósito é que se consiga uma noite espontânea. Eu digo "noite", porque é sempre à noite, mas o disco foi gravado dia. (Ficam a saber)

É essa espontaneidade que faz acontecer aquela coisa que nós, fadistas, dizemos: "olha, aconteceu!"

Por exemplo, a guitarra portuguesa, é um instrumento, principalmente, melódico que responde à voz, num registo muito agudo, metálico devido às cordas de aço, quer dizer, tem questões muito próprias. A guitarra elétrica, muitas vezes foi assumir essa identidade de lead, mas com outra textura sonora, com outro som.

Como é que vai ser agora este disco? "Portuguesa" vai andar pelo mundo. Tem um título que, se calhar a um público estrangeiro, possa ser difícil de pronunciar ou de dizer, vai ser um desafio levar este disco pelo mundo?

Acho que não. Acho que "Portuguesa" sugere sempre algo próprio de um lugar, neste caso é o meu, mas sugere alguma identidade e eu acho que, pela experiência que tenho, a cantar para o mundo, ou alguns lugares do mundo, em vários lugares distintos, sinto que há sempre essa busca. Ou já conhecem o Fado e vão atrás desse artista, mas quando são lugares inóspitos, onde não conhecem, eu acho que a grande ponte, a grande ligação, é com essa ideia de "estou a assistir a qualquer coisa que vem de um lugar".

Pode já não vir no seu estado mais puro, porque não fui até à casa de Fados, mas vem com uma cor muito densa da sua natureza, e, portanto, eu faço esta relação do fado com as cores, porque o Fado é como se fosse uma cor pura!

Por isso é que muitas vezes é utilizado para colorir, para dar sabor, dar algum tom a outros estilos que são mais diluídos. E isso é muito bonito também, porque há esta contaminação.

Tem o seu Fado que cor tem?

Ah, não sei. Tem uma cor familiar. Não sei. Acho que tem uma cor pura. Não posso dizer que é um disco de Fado Tradicional e ortodoxo, mas é sem dúvida, um pensamento tradicional sobre uma prática tradicional do Fado.

Continua a precisar sempre da Casa de Fados?

Claro, sempre! E às vezes é mesmo uma necessidade de ir beber à fonte. E vou muitas vezes!

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