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Músico Manuel Fúria. “Ser católico significa uma atitude de resistência”

26 jan, 2023 - 17:00 • Maria João Costa

Desde 2017 que não lançava um disco. O músico precisou de um “afastamento”, mudar de vida, para “salvaguardar a própria música” e voltar a compor. “Os Perdedores” é o mais recente álbum. Fala com a liberdade de quem compôs, sem um “lápis azul” interno a música onde dá testemunho da sua fé católica.

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Aprendeu com Pedro Ayres Magalhães a escrever canções como as pessoas falam. Manuel Fúria esteve 5 anos sem lançar um disco. Entretanto mudou de vida, para “salvaguardar a própria música” que queria fazer. Hoje está a lançar “Os Perdedores”, um disco de sonoridade eletrónica pop, onde deixa a sua fé católica contaminar as letras.

Em entrevista ao programa Ensaio Geral da Renascença, o artista que é pouco dado a entrevistas justifica o seu afastamento dos últimos anos, com a “saturação” que sentiu da indústria musical. “Estive durante um tempo a ser lápis azul de mim próprio. Isso não era bom”, admite o músico.

Questionado sobre o facto de se assumir como músico católico, Manuel Fúria fala num “desafio permanente de negação” e “contenção”. Num mundo que promove o “consumo desenfreado” e “uma liberdade perniciosa”, Manuel Fúria vive num contratempo. “Ser católico significa estar numa atitude de resistência, contra um mundo que é hostil”, remata

Passaram cinco anos, desde o outro disco, o Viva Fúria. O que é que aconteceu no entretanto? Porquê este interregno?

Às vezes as pessoas demoram a fazer coisas. Não há grande justificação. Só o tempo que passa e as pessoas vão deixando que ele passe, e é demora. Mas no meu caso, e do salto entre o "Viva Fúria" de 2017 e "Os Perdedores", o que aconteceu mais de substancial foi da minha parte uma alteração, ou uma afinação na maneira como estou orientado dentro da música.

O que é que mudou?

A maneira como eu vivo a música e essa minha forma de expressão artística que até 2018 tinha sido um modo de vida, e uma maneira de ganhar dinheiro e viver disso. E a partir de 2018 deixou de ser, por decisão minha, e fruto de alguma saturação do mundo da música em Portugal, dos seus lugares, rituais e percursos.

Houve uma necessidade de afastamento do mundo da música?

Houve uma necessidade de afastamento e de desconectar, a música que faço, da maneira como ela é apresentada e consumida. Tive necessidade de fazer isso para salvaguardar a própria música.

Para poder saborear também melhor aquilo que faz?

Isso não foi uma intenção, mas acabou por ser uma consequência. É o que estou a viver agora, depois de ter feito o disco, ter dado dois concertos e o disco estar a ser recebido pelas pessoas e comentado, e em alguns casos elogiado. A maneira como eu recebo essas reações, é feita com outra paz.

Há muitas vozes novas, há um lado comercial na música. O que é que o levou a afastar-se desse universo da indústria da música, de como está estruturado e funciona?

Para além de uma saturação desse mundo, e dos percursos dentro desse mundo, eram os rituais, as expectativas e de uma certa ansiedade que esse mundo provoca. Acho que não é bom para a música que faço. Pode sufocá-la.

Por outro lado, também estava a sufocar aquilo que faço, uma pressão, ou um fardo mais ou menos novo para mim de escolher as palavras certas, tentar evitar ser cancelado por não dizer as coisas que a nova ortodoxia diz que temos de dizer, ou que temos que seguir, ou que temos que fazer.

Quer dar exemplos?

Estes novos puritanismos que existem em relação por exemplo a temas como o homem e mulher, ou as identidades, etc. Senti e estive durante um tempo a ser lápis azul de mim próprio. Isso não era bom, estava a ser fator de angústia, porque a arte não deve estar refém deste tipo de condicionamentos.

Que disco é este? "Os Perdedores" tem uma identidade musical pop.

Na sequência disto que eu estava a dizer agora, houve um momento de libertação em que a estrada apresentou dois caminhos, e eu escolhi um deles, que é este onde estou agora. Ao escolhê-lo, libertei-me desses constrangimentos que vinha sentindo. A partir desse instante em que me libertei deste constrangimento, o nome "Os Perdedores" surgiu-me e surgiu como o nome para um disco e como um conjunto de intenções à volta do tema da perda em várias frentes.

Este disco acaba por ser um caminho, um pequeno itinerário que passa por várias estações, vários apeadeiros e lugares que tem a ver com perda.

De que tipo de perda quer falar?

Coisas tão habituais e reconhecíveis para qualquer um, como perder um amigo, perdermo-nos a nós próprios, perdermos o fio à meada. Ao mesmo tempo desse processo de perda, o reconhecimento que a perda, mais do que uma atitude artística, ou mais do que uma desculpa para fazer um disco, é também uma vocação cristã.

Em que sentido?

Este disco não é um lado meu. Este disco sou eu. Tem a ver com uma atitude existencial de viver a perda como atitude necessária para um cristão, e a perda ser a mortificação que nos esvazia e que retira de nós tudo o que está a mais, para podermos entrar na porta estreita do céu. O ponto é esse, acima de qualquer outro.

Sempre se assumiu como católico. É fácil ser-se um músico católico, ou um católico que é músico?

Eu acho que não é fácil ser católico, ponto final. Seja músico, seja carpinteiro. Se calhar sendo carpinteiro, é mais fácil, porque é uma profissão dos Evangelhos, de José e de Jesus. Mas acho que não é fácil ser-se católico

Porquê?

Ser um católico verdadeiro, viver a religião de uma maneira verdadeira, é um desafio permanente de negação, de contenção, de nãos, de colocarmos sempre fronteiras e negarmos coisas. Isso não é fácil, especialmente num mundo, e numa civilização ocidental que promove o contrário. Promove o consumo desenfreado, promove uma liberdade perniciosa, uma série de solicitações num ambiente de hipersexualização, entre outras coisas.

Não é só esse pecado, mas também o da gula. Vivemos num tempo que faz um culto da comida, dos restaurantes e dos chefes. Isto pode-se aplicar a várias atividades e a várias idolatrias que existem. Mas, acho que não é fácil ser se católico. Também não é fácil hoje, como não seria há 100 anos, ou há 200 anos.

Hoje temos outros desafios e se calhar para hoje, ser católico significa estar numa atitude de resistência. Contra um mundo que lhe é hostil. Sendo músico, dentro da música, isso também existe. Por um lado, porque é um universo tradicionalmente muito secular. Por outro lado, também é um mundo mais noturno, onde existem muitas solicitações que não são boas. Desde as drogas, a tudo o que está envolvido

Vícios?

Sim. As relações sem compromisso. Isso é uma coisa que é de agora, mas também seria de há 20, ou 30 anos. Isso é uma coisa que não me interessa muito, e, por isso, ser músico como eu, no universo pop rock e ser católico, é colocar ainda mais freios. Há músicos religiosos, como o Nick Cave, por isso pode fazer-se um percurso

Como foi a gravação deste disco?

Este disco foi feito de uma maneira mais individual e solitária, ao contrário de outros. Também por isso é que não tem aqui os Náufragos, como nos último dois ou três. Aliás, o disco nem vem assinado. Nas plataformas está associado ao meu nome para saber que aquilo é meu, mas o disco mesmo, diz só "Os Perdedores".

Foi um caminho solitário, feito na companhia do Gui Tomé Ribeiro, que é dos Salto e também colaborou muito com Moullinex e outras pessoas. É também produtor de música eletrónica sob a designação GPU Panic. Foi ele que produziu o disco. Foi um caminho a dois muito fértil, na medida em que somos diferentes. Há uma diferença na maneira de pensar a música. Eu se calhar sou um pouco mais conservador, quadrado, preso aos meus modelos e às minhas referências que guardo com alguma reverência, e o Gui, pelo contrário, é muito mais aberto à ideia de originalidade, de inovação, de procurar soluções que não seriam, à partida, as mais óbvias.

E quem foram as influências na escrita?

Isso é mais difícil! Se fosse em termos musicais era mais fácil.

Então começamos pelos musicais.

Uma série de bandas e de artistas que vão sendo tutelares naquilo que faço. Tem a ver com a música de meados dos anos 80, eletrónica e não só, mas no caso deste disco, os New Order foram muito importantes, também foram importantes os Happy Mondays, toda aquela cena de Manchester associada à Editora Factory, mas também outros, como os Pet Shop Boys, os Everything But The Girl, não sendo figuras tutelares, para mim foram importantes para fazer este disco. Também a eletrónica francesa dos Daft Punk, dos Justice. Houve vários nomes que foram importantes

E na escrita?

Em termos de escrita, e em termos mais literários, acho que há um pano de fundo na minha influência, que é, por um lado, um caminho que eu comecei a fazer por intuição e depois percebi que havia precursores dessa maneira de escrever. Depois fui mais à procura deles, neste caso, o Pedro Ayres de Magalhães. É nesta perspetiva de escrever como falamos, e usar um português mais simples, real, não por não saber escrever de outra maneira, mas por procurar escrever de uma maneira que é mais próxima das pessoas, da maneira como as pessoas falam umas com as outras. Procurar essa simplicidade na escrita. Não é preguiça intelectual. É um dispositivo literário declarado.

Quando percebi que os Heróis do Mar, os Madredeus, etc. já tinham isso, para mim passou a ser um reservatório onde eu queria ir buscar inspiração. Por outro lado, neste disco há uma série de autores que foram importantes. O Charles Dickens foi um autor importante. A Adélia Prado, o Daniel Faria também. Foram lugares dos livros onde eu fui buscar apoio. Há uma canção, Blandina de Lyon onde digo um poema da Adélia Prado.
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