Emissão Renascença | Ouvir Online
A+ / A-

Livro

Escritora Isabela Figueiredo. “A minha Margem Sul, que é feia, ainda tem humanidade”

02 dez, 2022 - 06:36 • Maria João Costa

Depois de “Cadernos de Memórias Coloniais” e de “A Gorda”, a escritora está de regresso com novo romance. “Um Cão no Meio do Caminho” passa-se na Margem Sul, fala da solidão dos idosos e questiona a sociedade de consumo.

A+ / A-

“Um Cão no Meio do Caminho” (Ed. Caminho) é o primeiro romance em que a escritora Isabela Figueiredo não recorre às suas memórias pessoais e agarra a ficção com as duas mãos. A autora não deixa, no entanto, de estar no livro, com todo o seu poder de observação.

Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, Isabela Figueiredo lembra que observar “é o trabalho dos escritores, e dos artistas”. “Nós observamos, absorvemos e a seguir mostramos aquilo que estamos a ver para que os outros aí se reconheçam, ou não”, explica a autora que nesta obra centra a ação na história da personagem José Viriato.

A personagem principal é um homem que recusa levar a vida que nós todos levamos. Aquela vida da engrenagem que nos faz muitas vezes trabalhar naquilo de que não gostamos, porque temos de pagar contas e criar os filhos. Ele escolhe um caminho que não é um caminho fácil, porque é um caminho de liberdade”, conta a escritora.

José Viriato não só vive na Margem Sul do Tejo, como vive à margem da sociedade. “Se ele recusa ter uma vida de trabalho tradicional, como é que ele vai viver, comer, pagar a renda da casa?” interroga a criadora da personagem. A sua “demanda”, como lhe chama Isabela Figueiredo “foi descobrir como é que uma pessoa pode viver sem ter um trabalho assalariado”.

Porque queria abordar o tema da sociedade de consumo, com todos os seus excessos, neste livro a escritora coloca a sua personagem a “viver dos restos da sociedade de consumo”. “Eu não só quero questionar a forma como trabalhamos, como quero questionar a sociedade de consumo em que vivemos, com tudo o que deitamos fora, com tudo o que temos e não precisamos” indica a autora que recorda de em criança viver “com muito menos coisas”, e viver bem.

Por contraponto, à personagem de José Viriato surge a sua vizinha, uma mulher conhecida no bairro como a Matadora. Beatriz é uma acumuladora. “Como é que ela vai honrar o que a sua mãe lhe deixou, não deitando fora as suas coisas? Como é que ela vai aproveitar toda essa memória?” interroga-se a autora. O resultado é uma “grande acumulação, uma vida excessiva”.

“A memória de cada um é o seu bilhete de identidade íntimo” escreve Isabela Figueiredo neste livro onde quer também falar da solidão na terceira idade. “A avó do José Viriato é uma personagem muito importante para mim, porque é uma senhora de idade que vive sozinha e que representa muitas pessoas de idade que vivem sozinhas. Representa a solidão dessas pessoas”, explica a autora.

Nesta entrevista, assume também a geografia deste novo romance como um eixo central para o desenrolar da história. “Não me interessa estar num centro de cidade muito bonito, se nesse centro de cidade não há água para os pássaros, se não há calor humano. Sinto muito isso quando estou em Lisboa. Sinto que Lisboa perdeu imenso em calor humano, em vida, em humanidade. E a minha Margem Sul, que é feia, que tem os prédios com as marquises e tem o caldo arquitetónico, ainda tem gente, ainda tem humanidade”, aponta a autora.

No seu quotidiano que se desenrola também na mesma Margem Sul do Tejo onde se passa o seu livro, diz: “ainda nos cumprimentamos, queremos saber da vida uns dos outros e ainda temos uma malga de água à porta para que os pombos possam beber. Eu observo esses pequenos gestos de gentileza e generosidade. Observo e fico com eles para mim. É isso que me interessa na vida, é esse calor entre as pessoas, e essa comunhão”.

Isabela Figueiredo, a escritora de “Um Cão no Meio do Caminho” venceu há 15 dias em França, no Festival de Literatura Europeia de Cognac, o prémio dos leitores. Terá agora direito a uma residência literária na casa da escritora Marguerite Yourcenar.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+