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Entrevista a Aleksandr Sokurov

"Conheço Putin, privei com ele. Tenho um grande ressentimento"

18 nov, 2022 - 17:08 • Maria João Costa

É um dos realizadores russos mais destacados da atualidade, mas o seu último filme foi impedido de estrear na Rússia. Em Lisboa, Aleksandr Sokurov considera o boicote à cultura russa um erro e alerta: não podemos ser ingénuos quando há políticos com poder nuclear.

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Considerado um dos sucessores do Andréi Tarkosky, Aleksandr Sokurov nasceu na Sibéria há 71 anos. Nomeado como um dos realizadores russos mais destacados da atualidade, o cineasta viu o seu mais recente filme a ser proibido na Rússia. "Skazka" foi apresentado em Lisboa, no âmbito do Lisbon & Sintra Filme Festival.

Em entrevista à Renascença, o realizador nascido na Sibéria, que já privou com Vladimir Putin, diz não compreender a guerra na Ucrânia. Ele que foi impedido pelas autoridades russas, recentemente, de se deslocar a um festival em Itália, considera que não haverá vencedores, nem vencidos no conflito, e, admite, “a Rússia nunca reconhecerá uma derrota”.

Sokurov, que se mostra preocupado com “políticos loucos” que têm poder nuclear, lamenta que Putin esteja “infelizmente convencido de que a sua opinião e reflexões podem ser provadas com um método tão mau, como a guerra”. O realizador lembra, contudo, que agora, “o problema da Rússia é uma grande crise provocada pela guerra”

No seu filme, "Skazka", dá vida e protagonismo a quatro homens de poder. Hitler, Estaline, Mussolini e Churchill entram em diálogo numa espécie de purgatório. Como é que nasceu a ideia para este filme?

Na minha opinião, essas quatro personagens nunca estiveram separadas, eles coexistiram num contexto histórico único. Cada um deles estava a desempenhar o seu próprio papel, a sua função. Eu não posso dizer que tenha sonhado isto, eu imaginei o filme diversas vezes. E se estes quatro personagens pudessem juntar-se num passeio pelo parque e conversar?

Estudou História na faculdade. Faz este filme que pega em figuras históricas controversas. Pergunto se devemos aprender com a História?

A História é uma má influência (riso)! A grande lição da História, é que nós nunca aprendemos nada com a História! Mas como historiador, não podemos ser pessimistas. Temos de ter um outro olhar.

Espero que as respostas às perguntas que não encontramos na História, e que não aprendemos a partir da História, possamos aprender com a Arte e com as obras de arte. Por exemplo, a "Divina Comédia" oferece respostas para tudo. Podemos lembrarmo-nos das grandes questões que são colocadas por Goethe, e quantas respostas ele oferece!

Veja como Cervantes responde a perguntas tão difíceis! Não é só um pobre cavaleiro como Dom Quixote, veja a quantidade de outras questões estão ali contidas.

No filme, coloca justamente estes quatro ditadores e homens de poder perante os moinhos de vento de Dom Quixote, e mostra como os sonhos podem ser destruídos. Acha que precisamos de mais sonhos para sobreviver aos dias que vivemos hoje?

É importante pensarmos que não nos é permitido ser ingénuos! Temos de nos lembrar que há políticos loucos, e muitas vezes estão de cabeça perdida. O problema é que têm armas nucleares. Veja como os americanos bombardearam cidades pacíficas. O perigo nuclear é muito real neste momento.

Significa que como cidadãos, ao decidirmos sobre o nosso próprio destino temos de observar os políticos que defendem os valores humanistas, acima dos outros valores. Só estes nos podem salvar! Só desta forma, podemos prevenir todo o mal e perigos.

Se acontecer alguma coisa, já não podemos fazer nada. Muitas vezes, uma pessoa morre devido a uma doença, porque o seu diagnóstico foi tardio. Quando já é tarde demais, já não há esperança na salvação! O coração é uma espécie de médico que pode curar a doença, indicar o problema, e qual a solução.

Como está a falar desses líderes políticos, quero perguntar-lhe que sentimento tem quanto ao homem que lidera o seu país, Vladimir Putin?

(Suspiro) Tenho um ressentimento muito grande e de certa forma, tenho uma impressão difícil. Veja, eu conheço este homem, eu privei com ele, e também tenho consciência que infelizmente ele está convencido de que a sua opinião e as suas reflexões sobre a vida podem ser provadas com um método tão mau, como a guerra. Para mim é-me muito difícil, e magoa-me muito, o que está a acontecer.

O problema da Ucrânia e a guerra, é um problema puramente político e como tal só pode, e tem de ser resolvido de forma política, com as ferramentas da política. Não de outra forma! É um grande mal para todos nós, o que está a acontecer!

No passado recente foi impedido de sair da Rússia pelas autoridades para ir a um festival em Itália. Foi fácil conseguir vir a Portugal?

Sim, não tive problemas para conseguir um visto. Eu penso que o visionamento do meu filme na Europa acontece no momento certo. Porque neste momento temos de perceber melhor o passado. Talvez possamos aprender algumas lições hoje. É muito importante mostrar o filme.

Tudo o que acontece no filme, todos estes tipos de problemas têm a ver com a Europa e connosco, o Velho Mundo. São problemas do nosso tempo, para russos, italianos, portugueses, alemães. Somos todos parte deste Velho Mundo sobre o qual o filme fala.

"Guerra vai acabar sem vencedores em nenhum dos lados"

O filme tem também outro personagem. Jesus Cristo surge no filme, estes líderes são julgados nas portas de Deus. Perspetiva isso como uma forma de salvação?

Como cristãos, temos de ter esperança. Temos de ter esperança! Eles não têm outra hipótese. De forma alguma!

Ao mesmo tempo, especialmente agora, percebemos claramente que ninguém tem força para parar. Quando começamos a I Grande Guerra ou a II Guerra Mundial, e todas as guerras que se seguiram, ninguém nos travou. Quer dizer que tudo depende de nós.

Na Rússia dizemos: "tem esperança em Deus, mas cumpre o teu papel". Quer dizer que não podemos delegar as nossas funções, temos de fazer bem o nosso trabalho! E numa primeira instância, isto diz respeito à arte e à cultura.

A cultura e a arte não têm partido. Não pode pertencer a um partido. Se a cultura servir os valores do poder, como o nazismo, significa que já não é cultura. A cultura é baseada nos valores humanistas e esses são os que devemos defender.

É um dos realizadores russos mais conhecidos. Como é que vê a forma como o cancelamento e o boicote que a cultura russa tem sofrido? Como vê esse ataque à cultura russa?

O que está a acontecer é um grande equívoco. É também um grande erro da parte dos políticos e dos intelectuais que também apoiam esses boicotes. A cultura russa é uma das grandes culturas do mundo que oferece muito ao mundo.

Se pensarmos só numa obra, no "Guerra e Paz", que outra cultura ofereceu ao mundo tal conceito? Temos de nos lembrar, tal como nos mostra o "Guerra e Paz", a cultura russa, a arte, em qualquer circunstância são oposição ao governo, nem naquela época, nem agora. Por esta razão, acho que a arte russa testemunha outros valores.

Isto é tudo um grande mal-entendido, um grande erro dos políticos, porque eles decidiram cancelar a cultura russa. Se pensarmos na ideia socrática de democracia, porque não proibimos a cultura americana quando esta provocou uma grande crise no Iraque e em todo o mundo islâmico? Eles quebraram o equilíbrio entre o islão e o mundo ocidental.

Devido a isto, também deveríamos boicotar a cultura americana! Seguindo este raciocínio, também teríamos de cancelar a cultura colonial de países como Portugal, Inglaterra ou França. Onde está a fronteira? Lembre-se que a arte fica do outro lado da fronteira. Nunca apoia a guerra. A arte apoia outros valores que não a guerra e se apoia a guerra, já não é arte!

Na América, por exemplo, lembre-se dos movimentos de oposição na década de 1960 contra a guerra no Vietname. Foram apoiados por estrelas do rock, mas também por realizadores de cinema e escritores. Portanto, toda esta comunidade artística combatia contra as decisões do governo norte-americano.

Espera que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia acabe? Quando e como?

Não há dúvida de que vai acabar, porque esta destruição tem de acabar. Mas prevejo que não haverá vencedores em nenhum dos lados. Nenhum dos países se pode considerar vitorioso com este número tão elevado de vítimas civis e militares. Ninguém pode declarar vitória.

Quando um vizinho ataca o seu vizinho, destruindo tudo, as vítimas reivindicam-se contra o agressor. Todas as partes perdem. Não há nada de bom, ou vitória nisto!

Como é que vê o futuro da Rússia depois desta guerra? Que preço é que a Rússia irá pagar, mesmo não havendo vencedores e vencidos na guerra?

Na minha opinião, a guerra vai acabar, mas a Rússia nunca reconhecerá uma derrota. O problema da Rússia é uma grande crise provocada pela guerra que a Rússia está a viver.

Quando digo que a Rússia não vencerá, mas que também não irá perder, quero dizer por "perder" que a Rússia é um país tão grande que não é possível fisicamente ser ocupado.

Grande parte do território russo não é habitável. É demasiado gelado. Por isso, não há uma força militar que consiga ocupar tal território, sobreviver e ganhar as pessoas que ali vivem.

Ainda sobre o filme, não usou atores, recorreu a imagens reais dos líderes. Como foi escolher as vozes que deram expressão às personagens?

Quero sublinhar que não usamos imagens falsas neste filme. São imagens reais. Os atores não representam, apenas emprestam a voz como disse. O que é importante neste filme, é composto por fragmentos, como num fresco ou melhor, como um mosaico.

Ao compor este mosaico fui ajudado pelo facto de todos estes líderes políticos foram muito filmados. Temos as suas vozes verdadeiras, o que eles disseram em vida e ao estudar isso, fomos capazes de recriar a vida destas personagens.

Às vezes para dar realismo às personagens temos de compreender e observar as suas vidas no dia a dia. Por exemplo, o ator que faz a voz de Napoleão, é o cônsul de França em São Petersburgo.

Para Estaline, que é um papel importante, escolhemos também um ator não profissional, um empresário que nasceu na Geórgia que vive em Moscovo. A sua filha e esposa ajudaram-no a encontrar o tom certo, palavras típicas de Estaline. Foi um trabalho conjunto. O filme foi trabalhado como uma obra de arte, como um verdadeiro filme de ficção.

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