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Quem é a espanhola que escreveu um romance sobre o Terramoto de Lisboa?

09 fev, 2022 - 09:50 • Maria João Costa

“Ressurecta” é o título do livro de Vic Echegoyen. A autora nascida em Madrid resolveu contar em romance seis horas do dia em que a terra tremeu em Lisboa. As suas personagens são todas reais e foram os “pilares” da reconstrução da cidade.

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Diz que nasceu no "dia de Fátima", a 13 de maio e quando fez 50 anos quis vir a Portugal agradecer meio século de vida. Foi então que a espanhola Vic Echegoyen sentiu o impulso para escrever um livro sobre Portugal. E foi às memórias de infância buscar a inspiração. Recorda quando tinha 6 anos passava as férias de verão em Huelva, na fronteira algarvia. Ali sempre ouviu as histórias sobre o Terramoto de Lisboa de 1755 que também abalou Espanha.

Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, a autora que viajou até Lisboa de carro para vir apresentar o livro “Ressurecta” (ed. Suma de Letras) conta que “todas as personagens do livro são reais”. Vic Echegoyen diz que durante a sua investigação encontrou verdadeiros “tesouros” nos testemunhos daquela que foi, nas suas palavras, “a primeira catástrofe mediática” do mundo.

Para a escritora “a maior lição” sobre o terramoto que aconteceu no Dia de Todos os Santos, está na solidariedade demostrada pela maioria dos lisboetas naquele dia. “Esqueceram totalmente a sua segurança para ajudar o próximo, o vizinho, o amigo, o desconhecido”

Porque é que uma escritora espanhola quis escrever um livro sobre o Terramoto de Lisboa de 1755?

Quando era uma rapariga com 5, 6 anos, as férias da família eram passadas em Huelva, muito perto do Algarve. Ali, há fissuras e testemunhos do grande Terramoto de 1755. Em toda a Andaluzia, em Huelva, Isla Cristina há vestígios. O torreão da igreja caiu. As pessoas na Andaluzia têm uma memória muito viva do grande Terramoto e muito respeito, porque as falhas tectónicas são as mesmas que nos afetam. A nossa história é partilhada. Impressionou-me muito.

Em 2019 fiz uma viagem por Portugal, porque eu tinha nascida no dia de Fátima, a 13 de maio, e quando fiz 50 anos pensei que deveria agradecer ao céu este meio século de vida. Então redescobri Lisboa. Fiquei apaixonada por Lisboa, pela sua história, das suas gentes. E aí começou a ideia de fazer uma homenagem à cidade e às suas gentes

Este livro conta apenas 6 horas na vida da cidade de Lisboa, no fatídico Dia de Todos os Santos em que tudo mudou para sempre a história da cidade. Optou por contar essas 6 horas minuto a minuto. Foi uma estratégia de escrita?

Não, foi antes um instinto. Queria que os leitores olhassem para todos os lados, para todos os grandes monumentos, igrejas e palácios, as cadeias, o teatro do Tejo tudo ao mesmo tempo, através dos seus heróis e heroínas. Pensei que deveria mostrar tudo ao mesmo tempo.

É como se o leitor fosse um pássaro que sobrevoar Lisboa?

Isso mesmo. Em simultâneo, e a abarcar toda a cidade e todos os detalhes.

No seu livro percebemos que o primeiro sinal de que estava para acontecer alguma coisa, é dado pela natureza. São os animais que dão o alerta.

Sim, é verdade. Nesse dia, um pequeno macaco foi a primeira criatura a sentir que havia perigo. Foi ele que alertou a família do embaixador dos Países Baixos. Foi assim que essa família salvou a sua vida, porque o macaco avisou. Mas há também os pássaros, as gaivotas, os animais no mercado perto do Tejo, os cavalos dos soldados, todos sentiram porque foi um fenómeno muito forte. Isso impressionou-me. Por isso os animais também são protagonistas.

Mas há mais protagonistas, desde logo o que viria a ser o Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo, o rei D. José, mas também os médicos do Hospital de Todos os Santos, a Inquisição, muitos religiosos. Como escolheu estes retratos?

Não escolhi, eles é que escolheram contar a sua história. Quando uma pessoa começa a investigar o que aconteceu naquele dia, são tantos os testemunhos reais. Todas as personagens do livro são reis, autênticos. Queria que eles falassem da sua vivência, da sua experiência e terror. Os médicos, os loucos do Hospital de Todos os Santos também sentiram que estava tudo muito mal, os castrati da ópera... são muito importantes.

E como recolheu esses testemunhos?

Quando investiguei todos os testemunhos conclui que eram um tesouro de informação. Estão em livros, nas biografias, nos relatos, nas cartas e nas crónicas. Essa catástrofe foi tão extraordinária que foi a primeira catástrofe mediática do mundo. Fez a primeira página de todos os jornais, gazetas de toda a Europa. Todo o mundo queria saber o que tinha acontecido, porque Lisboa era uma cidade muito cosmopolita. Havia moradores britânicos, holandeses, alemães, austríacos, espanhóis, das colónias, da América. É uma visão tão completa, tão rica e tão variada e eu queria mostrar essa riqueza de opiniões, de reações.

No decorrer dos minutos que relata no livro sobre este dia do Terramoto, vemos surgirem as reações ao que estava a acontecer e de como lidar com a destruição. Os seus personagens são os heróis também da reconstrução de Lisboa?

Todos eles foram muito importantes para o futuro. Foram os pilares da futura Lisboa. Também os estudantes no Terreiro do Paço escreveram as suas vivências. Naquele dia ninguém os conhecia, eram anónimos, pobres estudantes, sem fama, mas após, esta experiência fez deles sair da sua anonimidade e ficarem imortais. O mesmo acontece com os médicos, esse rapaz da Casa da Moeda, Bartolomeu de Sousa com 17 anos que defendeu o Tesouro do Reino durante 3 dias e 3 noites sem nunca abandonar o posto. Foi um valente. Era anónimo, mas depois ficou famoso.

Embora conte a história da destruição de uma cidade, o título do livro “Ressurrecta” remete para o depois, para a ideia de reconstrução e ressurreição. É intencional?

Sim, exatamente. Naquele dia, a maioria dos lisboetas demostraram uma solidariedade, uma empatia, generosidade. Esqueceram totalmente a sua segurança para ajudar o próximo, o vizinho, o amigo, o desconhecido. Essa é a maior lição daquele dia. E sim, após o Dia de Todos os Santos, vem a ressurreição. Naquele dia, Lisboa não morreu, renovou-se graças ao seu povo.

A cidade que hoje conhece ainda tem muito do que resultou depois do Terramoto, graças à visão de Sebastião José de Carvalho e Melo. Como é que olha hoje Lisboa quando percorre aqui as ruas, vê as suas personagens?

Com certeza. Eu cheguei ontem de carro a Lisboa e passei debaixo do Aqueduto das Águas Livres. Vi o grande General da Maia e o engenheiro Tenente-Coronel Carlos Mardel que era húngaro como eu. Em todas as ruas eu vejo os arquitetos, os artistas, os criadores. Essa Lisboa de ontem e a de hoje convivem em perfeita harmonia. Dá uma riqueza e profundidade à cidade que eu espero que nunca se perca.

Este é o seu primeiro livro publicado em Portugal, mas já tem outros livros editados em Espanha. Que lugar ocupa a escrita na sua vida, já que vem de uma família de escritores?

Acho que este livro é um passo à frente. Para mim é de uma abertura enorme, tal como Lisboa era aberta ao mundo. E sim, é uma tradição familiar que vem de muito longe de autores teatrais e romancistas como Sándor Marai e Imre Madách. Para mim, é natural escrever e escrever sobre História. Mas esta é uma das maiores histórias que pode ser contada. Para mim foi um grande feito. No futuro, não sei o que farei, mas sei que voltarei muitas vezes a Portugal porque a sua História é tão rica. Há ainda muitos segredos, mistérios e acontecimentos excecionais que eu vou querer explorar.

Os leitores espanhóis também se interessam por este Terramoto que atingiu Lisboa e afetou Espanha também?

Atingiu Espanha, toda a Europa, África, América. Sim, sem dúvida. Os espanhóis têm muito respeito pelas catástrofes naturais. Em 2017 ou 2018 houve um grande terramoto em Lorca, em Múrcia. E ali lembraram-se do grande Terramoto de Lisboa. Poderá acontecer hoje, agora mesmo, amanhã, não se sabe. Vai acontecer outra vez. Acho que as pessoas se unem por isso e conhecem o perigo.

Que escritores portugueses gosta de ler?

Gosto muito de Domingos Amaral e os livros "Enquanto Salazar dormia" e "Quando Lisboa tremeu". São romances muito interessantes. Claro que também gosto de Saramago que é um ídolo em Espanha. Mas também António Lobo Antunes. As literaturas portuguesa e brasileira são muito ricas. Podemos aprender com elas.

Aprender, é uma palavra que se aplica a este seu livro. Sente essa responsabilidade ao escrever sobre acontecimentos da História, de estar a dar ao leitor informação ao mesmo tempo que lhe oferece literatura?

Com certeza. Quando uma pessoa escreve sobre um tema tão bem documentado por tantos historiadores, em que há muita investigação séria, com dados estatísticos, geológicos, a sociedade. Acho que é responsabilidade do escritor de respeitar tudo o que aconteceu. Não se pode acrescentar nada, apenas se pode revelar essa grande tragédia, através das suas testemunhas e com as suas palavras.

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  • Alejandra Fonseca
    09 fev, 2022 Lisboa 12:20
    É um excelente livro! Recomendado.

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