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Escritor italiano foi a Lampedusa ver a crise migratória. O resultado está em livro

10 dez, 2021 - 07:18 • Maria João Costa

“Notas sobre um naufrágio" relata o drama dos que se fazem ao Mediterrâneo à procura de melhor vida, mas conta também o naufrágio pessoal do escritor e vida dos que salvam os migrantes.

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Por ironia da natureza, a pequena ilha italiana de Lampedusa, pertence ao continente Europeu, no entanto, está, nas profundezas do mar Mediterrâneo que tem sido o caixão de muitos migrantes africanos, na placa tectónica de África. Durante vários anos, o escritor e dramaturgo italiano Davide Enia viajou até Lampedusa para conhecer as histórias dos migrantes, de quem os salva e das vidas que se perdem. O resultado está no livro “Notas sobre um Naufrágio” agora editado pela D.Quixote, em Portugal.

Com tradução da escritora Tânia Ganho, o livro nasce da inquietação de Davide Enia. A viver na vizinha Sicília, o autor sentiu o chamamento de ir ver com os seus olhos o que se passava em Lampedusa. Em entrevista ao Ensaio Geral, da Renascença, numa breve passagem por Lisboa, o autor italiano afirma: “Lampedusa é parte da minha casa que é a Sicília. Sinto-me profundamente insular. Como Lampedusa é uma pequena ilha da minha Sicília fui ver o que se estava a passar”.

Mas Enia faz uma ressalva, foi “como ser humano, e não como italiano”. Admite que se sente “feliz de ter nascido em Itália”, reconhece que pertence “ao lado rico do Mediterrâneo”, mas essa “é uma grande sorte” que nem todos têm, sobretudo os que nascem do “outro lado do mar”.

Segundo o autor de “Notas de um Naufrágio”, os migrantes que se lançam em frágeis embarcações ao Mediterrâneo para chegar à Europa “representam um espelho que reflete a imagem da Europa”. Essa imagem explica Enia é de “um continente aterrorizado, devorado pela ansiedade e a angústia”.

Davide Enia considera que a Europa “é um continente onde não há futuro”, onde a “angústia e o medo permanecem”. No livro, em que o autor conta através da sua própria história e da relação com o seu pai, os vários naufrágios, pessoais, mas também dos migrantes surgem várias interrogações.

“A pandemia ensinou-nos. O mundo está todo interligado. Por isso a Europa deve repensar todo o modelo de vida. Já não é sustentável este modelo baseado na exploração de outras pessoas, e dos recursos de outros países. Temos de enfrentar as alterações climáticas que é uma das causas da deslocação de pessoas, dos migrantes se atirarem ao mar. É porque o ambiente está a mudar. Temos de repensar tudo, porque hoje apercebemo-nos de que o mundo é só um”, afirma.

Histórias de violência cravadas nos corpos dos que chegam

Desembarques, salvamentos, naufrágios fazem este romance que é também um grito de alerta para uma realidade e um apelo a uma solução. Nas palavras de Davide Enia, “Lampedusa torna-se num símbolo”. Na opinião do escritor italiano, “mais cedo ou mais tarde, estes mundos - África, Ásia e a Europa - terão que se encontrar. Será um encontro com diálogo, troca e abertura”.

Há, contudo, segundo este escritor vários problemas para esse diálogo, desde logo o facto de a Europa estar a “vender armas aos países em conflito” de onde fogem os migrantes. Há também uma falta de vontade de na Europa falar-se sobre o problema da crise migratória. Com o livro o autor espera que os leitores se comecem a interessar pelo que está a acontecer e que dá à costa italiana a um ritmo quase diário.

“O que acontece todos os dias, é que há pessoas a atravessar o deserto, há pessoas que permanecem fechadas em ‘hot spots’ dentro dos centros em total desrespeito por todos os acordos internacionais. Todos os dias há pessoas que se lançam ao mar e morrem. A Europa não quer falar nisso, mas a consciência negra forma-se assim. O regresso dos regimes é a resposta mais simples para questões complexas. Para se ter uma perspetiva, não se deve construir muros, devemos derrubá-los para poder ver”.

O autor de “Notas de um naufrágio” recorda a dor que encontrou nos relatos em Lampedusa, quer dos que sobrevivem à travessia, quer “ouvindo as equipas médicas”. Segundo diz, as histórias de violência vêm cravadas nos corpos dos que chegam à Europa.

“Descobri que o corpo é uma narrativa, o corpo é uma página de um diário. No corpo fica escrito o que nos acontece, e os corpos de algumas pessoas, por exemplo da Líbia, dizem-nos que as pessoas são torturadas, são mutiladas e que todas as mulheres que chegam foram violadas.”

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