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​Entrevista

Valter Hugo Mãe escreve livro sobre o Brasil com “uma ideia de justiça para os grandes oprimidos”

23 out, 2021 - 08:15 • Maria João Costa

“As Doenças do Brasil” é um livro que teve seis versões diferentes. Valter Hugo Mãe escreve “um romance com a estratégia do poema”, para contar a visão dos povos originários do Brasil.

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Pediu o título emprestado ao padre António Vieira. “As Doenças do Brasil”, o novo livro de Valter Hugo Mãe, é lançado numa altura em que o escritor completa 50 anos e sente que está “obrigado, de uma vez por todas”, a tornar-se adulto, mas não sabe “bem como”. Nas suas palavras, este é um livro que tem “uma intenção de abater tudo o resto” que escreveu.

Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, o autor confessa que levou tempo a encontrar a voz com que queria escrever este livro editado pela Porto Editora. Foi na poesia que encontrou as ferramentas para criar a voz, uma espécie de “vocábulo novo”, para contar a história dos povos originários do Brasil. Mais de 500 anos depois da chegada da Armada portuguesa, do outro lado do Atlântico subsistem desigualdades.

Valter Hugo Mãe diz que este livro “é também uma tentativa de criar uma ideia de justiça em torno das grandes periferias, dos grandes oprimidos”.

Há muito que não publicava um romance. "As Doenças do Brasil" foi um livro difícil de escrever? Quanto tempo levou a oficina de escrita desta obra?

Sim, foi um livro particularmente difícil. Levantou-me algumas questões éticas e pudores por me querer dirigir ao Brasil.

Foi essa a ideia génese deste livro? Falar sobre o Brasil?

Desde que comecei a escrever romances que achei que me dedicaria, em algum momento, ao imaginário brasileiro. Porque o Brasil tem essa inscrição na minha identidade, há um certo fascínio e um certo assombro desde menino, por isso achei que um dia escreveria um livro mais ou menos brasileiro. Ao fazê-lo agora, como acontece com "As Doenças do Brasil", colocaram-se montes de questões.

"A História aconteceu, os considerados vencedores e vencidos estão consumados. Nós é que somos a grande questão"


Que tipo de questões?

Desde logo a legitimidade. Que legitimidade tenho eu para me abeirar de um universo que me pode fascinar, mas no qual eu não vivo? Temos sempre a tendência para opinar com facilidade à certa daquilo que não pesa nos nossos ombros. Então, foi paulatinamente que fui conquistando esta voz. Mais do que estar a propor um lugar de fala, como se debate muito no Brasil, eu encaro este livro como um lugar de escuta, daquilo que o Brasil significa para mim. É uma participação, sim, mas tem mais que ver com tentar aprender alguma coisa, do que achar que estou em posição de ensinar alguma coisa.

Diz que foi preciso encontrar essa voz. Que mundo é este em que vemos os povos do outro lado do Atlântico a reagir à chegada dos descobridores?

Um dos grandes dilemas era resolver a questão da linguagem. Eu não poderia mimetizar o linguajar brasileiro, não seria interessante. Haveria de soar profundamente falso, por melhor que eu pudesse imitar. Ao mesmo tempo, não posso destituir-me de ser um escritor português que escreve em Português. Precisei de inventar um Português que fosse deturpado ou perturbado o suficiente para parecer um universo relativamente paralelo. Este livro acaba por ser uma tese sobre a linguagem. O imaginário que vem dos povos originários, dos índios, é uma matéria-prima que me permite, sobretudo, criar uma poética e, por isso, a grande conquista do livro tem que ver com essa dimensão de ter chegado ou tentar chegar a um vocábulo novo. E isso é apanágio da poesia. No fundo acaba por ser um romance que se faz com a estratégia do poema.

Por isso escreve na nota de autor: "É o meu poema que tem que ver sobretudo com o assombro, o preconceito, a maravilha". Este livro-poema tem também uma personagem com um nome muito poético, Honra. É mestiço, usa a língua dos brancos como arma. Este nome é mais do que só um nome?

É, porque é uma reclamação de toda uma multidão que é resultado de uma mestiçagem violenta. O Honra que é resultado de uma violação, de um homem branco a uma mulher índia, acaba por simbolizar esse novo povo que precisando de se pacificar com a sua mestiçagem, não deixa de ter essa ferida inicial, de ter começado pela violência.

Por isso é que esta personagem, Honra, não é “triste”, mas é “zangado”, como escreve?

Exatamente. Por isso é que ele não consegue pacificar-se na gentileza da sua comunidade Abaeté. Mais do que a sua dor produzir tristeza, produz uma fúria. Ele precisa de produzir uma vingança, porque é um guerreiro. Coisa que no livro acaba por sofrer outras modelações. Acabamos por perceber que a honra se conquista de outra forma. O nome dele acaba por ser, também ele, um símbolo.

Este é um livro sobre a identidade ou identidades?

Sim, desde logo é interessante ao ler o livro que nunca se diga a palavra Brasil, apenas está no título. Mas o livro inteiro é uma forma de entendermos quem são eles, quem somos nós, os portugueses. Curiosamente, sem que se diga mais do que a "Fera Branca".

Ou os “predadores”, é uma das expressões que também usa no livro.

Ao definir as coisas do ponto de vista de lá, dos povos originários que de repente acabam por se ver avassalados pela presença de um inimigo branco, o livro contribui para que produzamos uma lucidez acerca da entidade que cada um de nós pode ter.

E devemos fazer uma ponte para os dias de hoje?

Isso interessa-me muito. A História aconteceu, os considerados vencedores e vencidos estão consumados. Nós é que somos a grande questão. Aquilo que me interessa hoje perguntar ou suscitar em cada um de nós, é o interesse urgente de se posicionar e perceber como o racismo foi construído, como a escravidão foi uma instrumentalização para conseguir industrializar a captura de material nos territórios ocupados.

Acho isto importante, para se perceber que as sequelas destas opções históricas ainda perduram até hoje. Mais ou menos as coisas continuam a ser distribuídas pela mesma lógica, mas retoricamente vamos chamando de outras formas. Já não consideramos um escravizado uma pessoa que, por vezes, ganha o salário mínimo ou nem isso para fazer mais do que o patrão.

Quinhentos anos depois há questões que perduram?

Mudando as retóricas, muitas vezes encontramos a mesma situação de Império, de uma elite que subjuga uma maioria que acaba por se ver destituída da sua honra.

As doenças do Brasil são as mesmas agora, como há 500 anos?

São as mesmas doenças. Como diz o padre António Vieira, as causas originárias das doenças do Brasil têm que ver com essa avidez em cima dos bens e corpos alheios. São doenças levadas para lá pelos portugueses, pela “Fera Branca”, e perduram até hoje, quer lá, quer aqui. É a grande tragédia da Humanidade, esta propensão de não deixarmos o alheio em paz. Isso passa por tudo. Somos eminentemente predadores e vamos perpetuando essa predação, ao ponto de destituirmos o outro da sua dignidade.

Completou 50 anos recentemente...

Tragicamente! (risos)

Este livro sai nesta altura. É também um marco no seu caminho literário? O que se escreve depois de um livro como este?

Sei que os escritores dizem estas coisas, mas estou convencido que este é o meu melhor livro. Estou muito chocado com o fazer 50 anos porque sinto que sou uma criança que envelheceu, não sei bem como! Estou obrigado de uma vez por todas a tornar-me adulto e não sei bem como! Estou a resistir bastante. Quis muito compensar-me desse envelhecimento. Há qualquer coisa na idade que me retira a sensação de ficar impune às coisas e acabou completamente a impressão de uma certa eternidade, de longevidade bastante para que as coisas não precisem de se resolver. Neste momento, sinto que preciso resolver as coisas e não deixar as coisas em aberto. Clarificando. Apaziguando-me cada vez mais.

"Há milhões sem acesso à saúde, à escola [...] Tinha de escrever um livro que anseie pela ascensão dessas pessoas a uma igualdade e paridade"


Isso refletiu-se na escrita?

Não me interessa acrescentar ao meu trabalho, aos meus livros, uma coisa qualquer. "As Doenças do Brasil" quase que têm uma intenção de abater tudo o resto, como se tornasse desnecessário tudo o resto. Então é uma sensação de superação, como se de repente a vida tivesse conspirado para que eu pudesse fazer isto.

Recordo-me que quando nos encontrávamos dizia que tinha deitado fora mais um livro. Isso aconteceu com este livro?

Sim, escrevi várias versões do livro. Esta é a versão que escrevi em quatro meses, em Paredes de Coura. Mas ao longo destes oito meses eu terei escrito umas seis vezes o livro, umas seis versões. Talvez algumas versões menores, que não passaram das 50 páginas. Eu escrevi várias vezes este livro, contei-o de várias formas e com várias personagens. O livro só agora é que foi contado pelo narrador não participante. Ele foi sempre contado pelo Honra nas versões anteriores.

É uma oficina de escrita complexa.

Foi muito importante, já não sei trabalhar de outra forma. À medida que vou repetindo o livro, copiando, mas esquecendo o que fiz, aproveitando apenas o que paira na memória como mais intenso, vou-me apropriando do livro com maior propriedade. Como se soubesse contar melhor o livro, como se de versão para versão o livro se deixasse contar de forma mais explícita.

Acho que a minha única forma de trabalhar neste momento, é desprender-me cada vez mais das coisas e fazer com que o livro aconteça como se fosse tão natural quanto um fruto. Ao nascer, escreve-se inteiro num só gesto.

Como espera que o Brasil vá ler este livro?

Quero que seja possível verem para dentro deste título que não deixa de ser duro. É uma expressão do padre António Vieira. Espero, sobretudo, que possam ver a partir da questão poética e do encontro dos vermelhos e dos negros, no fundo, de um encontro humanista entre o Honra e o Meio da Noite. Não queria que o meu livro sobre o Brasil fosse um elogio panfletário, bacoco, de alguém que é apaixonado pelo país e pela cultura e que, inclusive, está grato ao Brasil pela felicidade que trouxe à sua vida.

Atendendo à atual situação do Brasil, este livro poderá ter outra leitura?

Não era possível escrever um livro que não fosse ao mesmo tempo crítico do que foi feito e é feito. Por isso, este livro, sendo esse lugar de escuta, é também uma tentativa de criar uma ideia de justiça em torno das grandes periferias, dos grandes oprimidos.

Do Brasil de hoje?

Sim, do Brasil de hoje. O Brasil é fraturante. Tanto tem de maravilhoso, quanto contém coisas terríveis. E estes últimos anos tem sido assustador verificar como a vida quotidiana se tem deteriorado e como as pessoas perigam cada vez mais. A violência aumentou, a moeda caiu bastante, e depois é muito frustrante ver que as maiores vítimas são sempre as mesmas. Os negros, periféricos, os povos indígenas, as comunidades minoritárias.

Há milhões de pessoas que não têm acesso à saúde, à escola. Há pessoas que não têm possibilidade de progredirem, por mais boa vontade e mais lisura que podemos esperar de uma comunidade assim. É muito difícil que se estruture para ser pacífica e feliz. Tinha de escrever um livro que se dirige a essas pessoas. Tinha de escrever um livro que anseie pela ascensão dessas pessoas a uma igualdade e paridade.

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