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Jacinto Lucas Pires: “Espero que não haja a tentação de pós-pandemia continuarmos no modo online”

19 mar, 2021 - 10:15 • Maria João Costa

O escritor está a lançar um livro de contos. “Doutor Doente” reúne um conjunto de histórias onde a realidade da pandemia ultrapassou a ficção. Jacinto Lucas Pires diz que o confinamento tira-lhe “material” para escrever.

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E quando a realidade ultrapassa a ficção, o que acontece a um escritor? Foi o que tentamos perceber com Jacinto Lucas Pires, o escritor está a lançar uma coletânea de contos intitulada “Doutor Doente”.

O livro, com a chancela da Editora Húmus, sai em plena pandemia e reflete o tempo que vivemos.

Em entrevista ao Ensaio Geral, da Renascença, Lucas Pires fala sobre o isolamento que a pandemia provocou. “Se não estamos com outras pessoas, enquanto escritores temos menos material, estamos menos vivos, menos inspirados e mais vazios”, admite o autor que deseja que, no pós-pandemia, a cultura não se transfira toda para o mundo digital.


Jacinto Lucas Pires, que contos são estes no livro “Doutor Doente”? De que forma foram contaminados pela pandemia de Covid-19?

São contos que tenho vindo a escrever, não os escrevi todos de uma vez. Têm a curiosidade de quando os escrevi, pensei que estava a escrever sobre um futuro, e a certa altura durante a pandemia, e durante a primeira vaga ainda escrevi alguns dos contos, comecei a perceber que afinal os contos eram sobre o presente, estes tempos esquisitíssimos que nos calharam na rifa. E, portanto, foi como se a realidade tivesse ultrapassado aquilo que estava a escrever e a ficção científica, ou a distopia que eu achava que estava nestes contos, afinal parecia quase realismo, não muito rigoroso, mas que tinha qualquer coisa a ver com o presente.

E nestes contos quem são as personagens que vivem essa distopia?

São muito diversas. Há desde um neurocirurgião, até um grupo plural de miúdos que fala como um nós revolucionário. Há mulheres, homens, muitas vozes distintas. Há uma carta de um prisioneiro a pedir que o deixem sair, antes do tempo. Há muitas histórias diferentes, mas todas estão unidas por uma certa estranheza que tem a ver com este tempo da pandemia. Como se afinal a distopia, fosse aqui, e não lá longe.

"Se não estamos com outras pessoas, enquanto escritores temos menos material, estamos menos vivos, menos inspirados"

No último ano entraram no nosso léxico diário palavras novas, como “desconfinamento”, ou passamos a repetir vezes sem conta palavras como vírus e isolamento. Como se escreve sobre estes dias, e este momento “esquisitíssimo”, como lhe chamou?

Tem muito a ver com a minha vontade de escrever estes contos e de os publicar agora. É a importância de encontrar uma linguagem, para o que é novo nas nossas vidas individuais e na nossa vida coletiva. E também perceber a forma como a linguagem pode ser, não só uma tradução desse novo, mas também uma arma para resolver algumas das novas questões que vão aparecendo. E estes contos, não sendo ensaios, usando as ferramentas da ficção e da voz das personagens, das intrigas, acabam de um modo de ter a ver também com várias questões de agora, como o divisionismo, as novas questões de liberdade que se põe com a pandemia. Também a questão europeia. Há alguns contos que falam da Europa enquanto unidade política e cultural. O desafio tem muito a ver com isso, qual é a linguagem para este tempo estranho e novo?

Nestes contos reunidos em “Doutor Doente” deixa também uma reflexão sobre o mergulho no mundo digital a que as nossas vidas se viram obrigadas diariamente, por causa da pandemia...

Estes contos são atravessados pela questão que é o que é a nossa relação com a internet, a nossa vida virtual, o que é que isso também fez às nossas vidas reais, o que é que isso fez à nossa maneira de estar com os outros, de pensar, sentir e falar. Acho que isso é também um outro barco que às vezes nos vem complicar e desafiar. Como é que podemos equilibrar as nossas vidas sem cair à água entre esses dois barcos, o da realidade e o da realidade virtual que parece cada vez mais dentro de nós?

E faz sentido o consumo da cultura através da internet? Ver teatro no computador?

Quando é a única possibilidade, acho que tem de ser. Temos de ser criativos e encontrar fórmulas de fazer as coisas e de estar uns com os outros, mesmo que à distância. Agora, sinceramente, se me perguntam se isto é o futuro? Eu espero que não! É muito diferente, qualquer aluno, criador ou professor sabe isso por experiência própria. Estar numa sala com as outras pessoas é diferente. Há o olhar, o contato, o não ter de esperar que o outro acabe de falar para dizer alguma coisa. Há os silêncios que são mais eloquentes, às vezes, quando estamos com a pessoa do que propriamente as palavras. Portanto, eu espero que não haja a tentação de pós-pandemia continuarmos no modo online. Acho que temos de mudar o mundo, sim, pós pandemia, e acho que a pausa da pandemia pode ter o efeito positivo de uma pausa no mundo para repensar e percebermos como podemos mudar, mas mudar para o online, não!

Temos a ideia de que o escritor vive permanentemente em isolamento, precisa de essa calma para escrever. O isolamento a que a pandemia nos obrigou foi mais fácil para si? Como têm sido os seus dias da pandemia?

Às vezes há uma certa mistificação do que é que é o artista, o escritor, o criador. Muitas das questões são parecidas com as de outros trabalhadores. Por um lado, sim, é bom sermos mais donos do nosso tempo, estarmos em casa, não ter de passar tempo no trânsito - sendo que este escritor, nunca tinha de passar muito tempo no trânsito! - Mas por outro lado, se não estamos com outras pessoas, enquanto escritores temos menos material, estamos menos vivos, menos inspirados e, portanto, é um pau de dois bicos. Temos mais tempo, mas estamos mais vazios, no mau sentido da palavra. Ainda por cima eu, além de escritor de contos sou dramaturgo e, portanto, gosto particularmente de quando as palavras se tornam voz de outras pessoas, de atores, de encenadores, de desenhadores de luz, de músicos. Ainda preciso mais dessa sala de ensaios que no fundo é o mundo e a cidade. Quando esse prolongamento não existe, não está lá, está trancado, o escritório também se torna mais triste.

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  • Ivo Pestana
    19 mar, 2021 Madeira 15:52
    Veio para ficar. Portugal quer copiar o que se passa na Estónia. Tudo online, o problema é que a rede vai abaixo, um hacker qualquer e não pensamos nos info-excluidos. Moral da história, pára tudo porque não existe plano B. É como quando vamos ao Banco, levantar o que é nosso e a menina diz, que o sistema informático foi abaixo e voltamos tristes para casa, sem o nosso dinheiro. Jacinto, isto é apenas o princípio.

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