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António Champalimaud

“Três vezes caiu e três vezes se levantou, quando morreu tinha a primeira fortuna portuguesa”

24 jan, 2021 - 09:40 • Sandra Afonso

Amado por uns, odiado por outros, António Champalimaud não deixou o país indiferente à sua passagem. Aprendeu a “fazer dinheiro com dinheiro”, mas preferia a riqueza que vinha da terra, talvez por isso tenha virado rapidamente a página da banca. Jaime Nogueira Pinto escreveu “António Champalimaud, Um Olhar”, que faz um retrato da vida deste homem de negócios.

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Desde cedo soube o que era começar do zero, uma lição que a vida o obrigou a reviver várias vezes, com fugas à prisão e avultadas perdas pelo meio, ele respondeu com troco – haveria de deixar “a primeira fortuna portuguesa”.

“António Champalimaud - Um olhar” (Ed D. Quixote) não é mais uma biografia, é o desejo de uma filha que morreu antes do livro ser editado, mas não sem antes espreitar o rascunho da obra que lhe viria a ser dedicada, como conta à Renascença Jaime Nogueira Pinto, que ficou com a empreitada.

Porque há histórias que não cabem numa imagem e homens maiores que a própria história, o que começou por ser uma fotobiografia, acabou por se transformar num misto – “uma biografia exaustiva”. É o cruzamento das memórias do autor, da família, dos amigos e dos colaboradores, pintadas com as imagens gravadas em diferentes câmaras escuras e documentos que marcaram “uma vida longa, nunca serena, nunca sossegada, rica em combates, derrotas, vitórias”. É também uma história a duas vozes: a do autor, antigo funcionário e amigo, e a do próprio António Champalimaud, com frases na primeira pessoa.

Jaime Nogueira Pinto quer desconstruir a “vida tranquila dos ricos”, esta é uma vida de altos e baixos. Começa com a morte do pai e a herança que este lhe deixou, “empresas em situação muito má”. Apesar de ter 19 anos, Champalimaud “dá a volta por cima, rapidamente”. Depois recebe a herança dos Cimentos de Leiria, do tio Sommer, “uma fábrica já muito moderna e muito bem equipada para a época”, mas com ela vem também um “longuíssimo processo de herança”, que se arrastou pelos tribunais. Outra batalha é a implementação da siderurgia em Portugal.

Ainda decorre o processo da herança Sommer, quando recebe ordem de prisão, com Marcello Caetano, e sai do país, “em circunstâncias um bocadinho rocambolescas”, acrescenta Jaime Nogueira Pinto. Só volta a Portugal em 1973, mas dois anos depois assiste à nacionalização de tudo o que tinha: os bancos, as siderurgias, os cimentos. Recebe ainda mandados de captura, “volta outra vez à estaca zero”.

“É um homem que três vezes caiu e três vezes se levantou e quando morreu (2004) tinha a primeira fortuna portuguesa”, conclui Nogueira Pinto. Segundo a Forbes, era uma das 200 maiores do mundo.

Um homem independente

Champalimaud arriscava, mas “não à maluca”, ele ponderava as decisões, segundo conta à Renascença Jaime Nogueira Pinto, que diz também ter conhecido “relativamente bem todas essas pessoas do que era o capitalismo financeiro industrial português antes da revolução, depois deixou de ser português, de um modo geral eram pessoas sempre relativamente atentas e moderadoras com o poder político da época. Champalimaud não. Tinha respeito e até admiração por Salazar, mas quando era preciso batia o pé, discutia e lutava. Era um homem muito independente, muito heterodoxo, não alinhava pelo que seria socialmente e economicamente correto, no sentido de as pessoas estarem bem enquadradas pelo poder e não mexerem nas coisas. Era um homem corajoso, também.”

Questionado sobre se Champalimaud usou ou foi usado por Salazar, Jaime Nogueira Pinto responde ‘nim’. “Estas coisas para correrem bem tem de ser de parte a parte, usa-se e é-se usado. Eram duas pessoas superiormente inteligentes e sabiam exatamente o que queriam.”

Champalimaud travou uma batalha com o poder de então, pela siderurgia. A certa altura surgiu uma tese para que fosse construída em Trás-os-Montes, “porque havia lá umas minas ou uns minérios”. O industrial teve então de recorrer ao primeiro ministro, “contava que Salazar já tinha estudado tudo sobre siderurgia, sabia imenso, mas tinha uma preocupação muito grande (e ele também) que era guardar a sua independência, que ninguém dissesse que o tinha no bolso ou que o tinha agarrado por qualquer razão, boa ou má. António Champalimaud também era assim, portanto, a relação não terá sido fácil, mas funcionou”, remata Nogueira Pinto.

Já com a chegada de Marcello Caetano, foi diferente. “Instalaram-se tensões e surgiu a ordem de prisão”. Foi quando António Champalimaud saiu do país. Em 1969 Champalimaud tornou-se foragido da justiça, chegava ao fim o primeiro império e começava o primeiro exílio.

“A indústria é que tem graça. Os bancos é ganhar dinheiro com dinheiro”

Muitos conhecem-no como banqueiro. A venda dos bancos aos espanhóis não caiu bem a muitos portugueses e muitos ainda carregam críticas por essa decisão. Mas a paixão do empresário nunca foi a banca, “era sobretudo um grande industrial e um grande criador”, diz Jaime Nogueira Pinto. Quando comprou os bancos, disse ao autor da biografia: “Jaime, se tivesse menos 10 anos voltava para a indústria. A indústria é que tem graça, fazem-se coisas. Isto, os bancos, é ganhar dinheiro com dinheiro, não tem graça”.

Mal sabia ele na altura a celeuma que este negócio ainda ia criar, quando anos mais tarde acabou por vender aos espanhóis. Ainda por cima, a entrada na banca é, quase se podia dizer, acidental. Só comprou o Banco Pinto e Sotto Mayor porque precisava dos seguros, para o império industrial que já tinha construído. Era dono da Siderurgia Nacional e da Cimentos de Leiria, em 1974 tinha o segundo maior grupo industrial do país e ainda participações noutras áreas.

Perdeu tudo com a revolução dos cravos e as nacionalizações, mas decidiu recomeçar do zero, de novo. Desta vez o destino foi o Brasil. Voltou a erguer-se com a exploração agrícola, a criação de gado e o cimento.

De regresso a Portugal, só pôde reconstruir o grupo financeiro. Quando o vendeu aos espanhóis, eram já três bancos - um dos maiores grupos bancários de Portugal - o Banco Pinto & Sotto Mayor (de que chegara a ser dono antes das nacionalizações), o Banco Totta & Açores e, indiretamente, o Crédito Predial Português.

“Uma pessoa bastante fora do baralho”

Há quem se queixe “de uma certa dureza”, Jaime Nogueira Pinto fala de Champalimaud como alguém que “agarra numa ideia, às vezes desconhecida, e faz as perguntas importantes”. Uma pessoa com quem “era muito interessante falar, discutir, tinha mundo e tinha aquela qualidade destas pessoas, que simultaneamente não se surpreendem e também se surpreendem com muita coisa e, quando acontece, manifestam-no.” Mas o autor vai mais longe, lembra que “há pessoas que passam por inteligentes e que são o contrário, acham que aquilo que não conhecem não existe, infelizmente já apanhei algumas assim, até no poder em Portugal. Champalimaud não era assim, era intelectualmente muito aberto à descoberta e quando se surpreendia com qualquer coisa também não tinha vergonha de o dizer.”

Nos negócios, o industrial mostrava-se como “um homem das coisas, estudava o negócio”. Nogueira Pinto recorda um episódio no Brasil, “havia uns problemas com os motores da Fábrica de Cimentos e ele lia imenso, estudou os motores, discutia com os engenheiros, e não tinha nenhuma formação em engenharias”.

António Champalimaud sabia rodear-se de qualidade e do que gostava, “tinha uma coleção de pintura, tinha uma casa muito bonita, mas prescindia de tudo quando era preciso”. Nogueira Pinto garante que “não era escravo das coisas”. No Brasil, “almoçava em pé muitas vezes, coxinhas de frango numa lanchonete de rua”. “Era uma pessoa bastante fora do baralho”.

Tem um fascínio por África e pela caça, mas com a idade acabou por romper com esta grande paixão. A viragem para a agropecuária, já no Brasil, terá tido influência.

“Quando lhe caiu o céu em cima, várias vezes na vida, com os processos, com o 25 de Abril, com o exílio, com isso tudo, ele aguentou-se muito bem. Tinha o tal modelo que Plutarco dizia de César, que era um homem igual na vitória e na desgraça, que não era nem arrogante na vitória nem envergonhado e desgraçado na derrota, mantinha-se sempre igual. Champalimaud tinha exactamente esse modelo, de uma certa austeridade”, observa Jaime Nogueira Pinto.

A Fundação, uma casa dedicada à saúde

Foi já em testamento que Champalimaud deu a conhecer a última grande decisão – deixou quase toda a parte disponível da herança, cerca de 400M€, para a criação de uma fundação, sem familiares na administração. Uma casa dedicada à saúde, que atinge todos, e que atribui anualmente o maior prémio do mundo dedicado à ciência e pesquisa no campo da visão,

Para Jaime Nogueira Pinto, “ele no fim teve duas preocupações: a família e o bem público."

Champalimaud viveu o drama das divisões de bens, foi devido à herança do tio Sommer que rompeu com os irmãos, e não quis o mesmo para os filhos. Chegou a avisá-los: "Nós não somos um clã. Clã é a família Espírito Santo. Nós não somos um clã". Daí a preocupação em "deixar tudo muito bem dividido, porque não queria que acontecesse com os filhos e netos o que tinha acontecido na geração dele, que abalou todos eles, os irmãos e a própria mãe", explica Nogueira Pinto. "Faz também a Fundação Champalimaud a pensar na questão da cegueira, que o preocupava muito”.

A Fundação Champalimaud é a mais conhecida, mas o empresário deixou também um grande donativo à Fundação Batalha de Aljubarrota, “penso que ter vendido os bancos ao Santander”, diz Jaime Nogueira Pinto. Isto apesar de, nesta decisão, também ter passado a oferta “que tinha melhores condições e maior segurança, eram ativos que facilmente se dividiam depois, as outras alternativas não tinham essas condições”.

Há quem admite que as fundações foram uma penitencia. Jaime Nogueira Pinto lembra uma graça que ouviu uma vez a um sacerdote antigo: "Que os pecadores deixavam sempre grandes legados à Igreja, as pessoas que tinham vidas transparentes não tinham essa preocupação". Aqui não é o caso.

Segundo Nogueira Pinto, Champalimaud teve preocupação com o bem público. “Era um homem patriota, tinha uma preocupação nacional, orgulho em ser português, orgulho na história de Portugal e no que os portugueses tinham feito ao longo da história - era um homem com preocupação pública de bem público. Portanto, a ideia da fundação insere-se aí e penso que o donativo bastante generoso para a Fundação Batalha de Aljubarrota era também porque era a questão da refundação da Independência de Portugal.”

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