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Entrevista

Elvira Fortunato. Investigadores portugueses “são corredores de fundo atrás dos euros”

11 dez, 2020 - 19:43 • Pedro Mesquita , Sónia Santos

Entrevistada no programa 'Nunca é Tarde', da Renascença, a cientista critica o elevado nível de burocracia na investigação em Portugal e lamenta a ausência de infraestruturas que, segundo diz, faz com que seja mais difícil fazer ciência cá dentro do que lá fora.

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Entrevista a Elvira Fortunado

Elvira Fortunato foi pioneira na eletrónica de papel e, este ano, chegou a ser apontada para o Prémio Nobel da Física, apesar de considerar ser muito nova para receber tal distinção.

Em entrevista à Renascença, a investigadora considera que o excesso de burocracia em Portugal é um problema e que, por essa razão, "dá mais muito mais trabalho" ser cientista em Portugal do que lá fora.


Apesar de hoje se ter batido mais um recorde de mortes em Portugal, já há vacina contra a Covid-19 e a imunização começa já em janeiro. Ficou surpreendida com a obtenção desta vacina em tempo recorde?

Fiquei, porque, para já, temos o histórico de qualquer coisa e, até aqui, o desenvolvimento de uma vacina e, até que a vacina esteja pronta a ser administrada, tínhamos anos de espera.

Neste momento, face ao investimento feito na área científica, face ao envolvimento de um grande número de investigadores e cientistas nesta vacina, julgo que a ciência está de parabéns e mostra o quão importante é investirmos em ciência.


O processo de distribuição e vacinação à escala global pode constituir um bom campo de investigação para o futuro?

É um bom campo de investigação e, acima de tudo, é global, além de que é extremamente importante, porque é para o bem da Humanidade e não para uma classe específica. Isso também é muito importante.


Integrou um grupo de cientistas e empresários que, em outubro, propôs um 'Simplex' para a ciência e inovação. Sente que foi dado algum passo nesse sentido em Portugal?

Infelizmente, ainda não foram dados passos. Houve algumas coisas que foram feitas, mas era bom que os políticos e os governantes olhassem para os cientistas e vissem que, quando é preciso, quando se investe, se tem vontade e se trabalha em equipa, as coisas acabam por acontecer mais depressa.


Mas quando se fala de 'Simplex', o quê que se defende na prática?

É a desburocratização. Em Portugal temos um sistema extremamente burocrático, nomeadamente na gestão de projetos.

Já é muito bom quando conseguimos atrair fundos europeus para desenvolver ciência e aplicá-la em Portugal e, depois, a execução dos projetos é diabólica.

Nós temos regras e mais regras e os políticos sabem disso.

Há um relatório em que identificamos 28 medidas de simplificação muito concretas, por isso, o problema está identificado, o diagnóstico está feito e há soluções.


É mais fácil ser cientista lá fora do que em Portugal?

É mais difícil, por vezes, termos as mesmas condições do que as que encontramos lá fora, designadamente em termos de infraestruturas.

Aliás, nós precisamos urgentemente, em Portugal, que exista um programa para investir em infraestruturas e equipamentos porque a ciência faz-se com pessoas, mas também se faz com máquinas, especialmente nas áreas mais aplicadas. É isso que nos está a falhar.


Mas tem conseguido fazer ciência em Portugal e com bastante reconhecimento. Isso prova que é possível...

...mas dá muito trabalho e ao fim de muitos anos. Não podemos desistir. Eu costumo, aliás, dizer que eu e a minha equipa somos atletas de fundo atrás dos euros.


Trabalha na chamada eletrónica transparente. O que é isto, exatamente?

Nós trabalhamos com materiais que são usados em eletrónica e, acima de tudo, materiais sustentáveis, que são não tóxicos e abundantes na natureza.

Na área da eletrónica transparente, nós fazemos circuitos integrados e eletrónica com materiais transparentes à radiação visível.

Dou-lhe um exemplo: eu podia ter eletrónica nas lentes dos meus óculos, através dos tratamentos anti-reflexo.


Qual é a vantagem?

Isto está a ser usado, por exemplo, na nova geração de mostradores planos. Em vez de ser cristais líquidos, passam a ser os Oleds. Inclusivamente, nós temos patentes com a Samsung.

Claro que não conseguimos ver o que está dentro de um ecrã de computador ou de televisão, mas a imagem que vemos nestes ecrãs é formada por pixeis e cada pixel tem um transistor que o comanda. É o conjunto de todos os pixeis que formam as imagens. Estes transistores para esta nova geração de mostradores é baseada nestes materiais sustentáveis desenvolvidos, em parte, por nós, em Portugal.


Gostava de ver mais mulheres na ciência?

Pelo menos, mais reconhecidas, porque nós temos muitas mulheres na ciência. Nem sequer vou falar nos Nobel, em que 3% são mulheres.

A verdade é que, no universo de investigadores, somos 50/50 homens e mulheres, mas as mulheres são menos reconhecidas.

Mas, tal como noutras profissões, também na ciência é difícil chegar ao topo.


Porquê?

Às vezes, porque, simplesmente, é mais fácil. As mulheres têm vida familiar e nem sempre é fácil conciliar.

Mas nós, na Universidade Nova de Lisboa, estamos a coordenar um projeto europeu de igualdade de género no sistema universitário, porque também se vê que também há muito menos professoras catedráticas relativamente aos homens, são cerca de 10%.

As mulheres, para progredir na carreira, vão sendo avaliadas da mesma forma que os homens mas, se calhar, não têm as mesmas oportunidades.

Se uma cientista é mãe, tem um trabalho acrescido com filhos, deveria ter um tempo extra na sua carreira que não deveria ser contabilizado da mesma forma que os homens.

Há uma série de incentivos que podiam ser implementados de forma a que, nas carreiras, isso não acabe por ser uma limitação.

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