09 jan, 2025 - 11:43 • Aura Miguel
"Perante a ameaça cada vez mais concreta de uma guerra mundial, o único caminho é dialogar com todos, incluindo os interlocutores mais incómodos”, disse hoje o Papa aos embaixadores acreditados na Santa Sé. “É o único caminho para quebrar as cadeias de ódio e vingança que aprisionam e para desativar os engenhos do egoísmo humano, do orgulho e da soberba, que são a raiz de toda e qualquer vontade beligerante que destrói.”
Num longo discurso, lido por um colaborador da Cúria, Francisco condenou “os atos de terror abomináveis” que ocorreram recentemente em Magdeburgo, na Alemanha, e em Nova Orleães, nos Estados Unidos e lamentou a polarização nas sociedades que gera sentimentos de medo e desconfiança em relação ao próximo e ao futuro. “Esta situação é agravada pela contínua produção e difusão de fake news, que não distorcem apenas a realidade dos factos, como acabam por distorcer as consciências, suscitando falsas percepções da realidade e gerando um clima de suspeita que fomenta o ódio, prejudica a segurança das pessoas e compromete a convivência civil e a estabilidade de nações inteiras”, considerou.
Neste contexto, Francisco propôs “um diplomacia de esperança”, para que a “lógica do confronto” dê lugar à “lógica do encontro” e permita às pessoas e comunidades a construção de um futuro de paz.
Francisco considera preocupante “a tentativa de instrumentalizar os documentos multilaterais, alterando o significado dos termos ou re-interpretando unilateralmente o conteúdo dos tratados sobre os direitos humanos, a fim de promover ideologias que dividem e espezinham os valores e a fé dos povos”. Para o Papa, trata-se de “uma verdadeira colonização ideológica que procura erradicar as tradições, a história e os vínculos religiosos dos povos”, que “abre espaço à cultura do cancelamento, não tolera as diferenças e centra-se nos direitos dos indivíduos, negligenciando os deveres para com os outros, em particular os mais fracos e frágeis”.
Neste contexto, “é inaceitável, falar do chamado direito ao aborto que contradiz os direitos humanos, nomeadamente o direito à vida. Toda a vida deve ser protegida, em cada um dos seus momentos, desde a concepção até à morte natural, porque nenhuma criança é um erro nem tem culpa de existir, tal como nenhuma pessoa idosa ou doente pode ser descartada e privada de esperança”, afirmou.
O Santo Padre reconhece a incapacidade da maioria das instituições multilaterais em garantirem a paz e a estabilidade, a luta contra a fome e o desenvolvimento, “de forma verdadeiramente eficaz aos novos desafios do século XXI” e considera “doloroso constatar que existe “o risco de uma homologação ideológica e de fragmentação em like- minded clubs que só deixam entrar neles os que pensam da mesma forma”.
Em tempo de conflitos abertos ou latentes, a diplomacia pode “tecer novamente as relações dilaceradas pelo ódio e pela violência, e assim enfaixar as feridas dos corações despedaçados de demasiadas vítimas”, considerou o Papa, pedindo o fim da guerra para 2025, a começar pela Ucrânia. “Alguns sinais encorajadores surgiram no horizonte, mas é necessário ainda muito trabalho no sentido de criar as condições para uma paz justa e duradoura e sarar as feridas infligidas pela agressão”, afirmou.
Francisco renovou o seu apelo para um cessar-fogo e para a libertação dos reféns israelitas em Gaza, “onde se vive uma situação humanitária muito grave e ignóbil” e pediu que a população palestiniana receba toda a ajuda necessária. “O meu desejo é que israelitas e palestinianos possam reconstruir as pontes do diálogo e da confiança mútua, a começar pelos mais jovens, para que as gerações vindouras possam viver lado a lado em dois Estados, em paz e segurança, e para que Jerusalém seja a ‘cidade do encontro’, onde cristãos, judeus e muçulmanos convivam em harmonia e respeito”.
Face à proliferação de armas, cada vez mais sofisticadas e destrutivas, o Papa insistiu para que “com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura duma vida mais digna”.
Ao recordar que “a guerra é sempre um fracasso”, Francisco insistiu: “não podemos aceitar, de forma alguma, o bombardeamento de populações civis ou o ataque a infra-estruturas necessárias para a sua sobrevivência. Não podemos aceitar ver crianças a morrer de frio porque os hospitais foram destruídos ou foi atingida a rede energética de um país”.
O Santo Padre considerou indispensável o cumprimento do direito internacional humanitário, aplicável em todos os contextos de guerra, nos quais a população é afetada por graves carências sanitárias e humanitárias, agravadas por vezes pelo flagelo do terrorismo, provocando a perda de vidas e o deslocar-se de milhões de pessoas.
Francisco considerou preocupantes e condenou as crescentes manifestações de anti-semitismo que se têm verificado nos últimos tempos e denunciou as numerosas perseguições contra várias comunidades cristãs, muitas vezes perpetradas por grupos terroristas, especialmente em África e na Ásia.
A denúncia do Papa não esqueceu “certas formas mais delicadas” de limitação da liberdade religiosa que, “por vezes, se verificam mesmo na Europa”, onde se multiplicam normas legais e práticas administrativas que a limitam ou anulam.
Ainda sobre as minorias cristãs, o Papa insistiu que “são cidadãos de pleno direito, especialmente nas terras onde vivem desde tempos imemoriais”. Francisco referiu-se, em particular, à Síria, “que, após anos de guerra e devastação, parece estar a percorrer uma via de estabilidade”. Do mesmo modo, falou “no amado Líbano, esperando que o país, com a ajuda decisiva da sua componente cristã, possa ter a estabilidade institucional necessária para enfrentar a grave situação económica e social, reconstruir o sul do país afetado pela guerra” e que “o Líbano continue a ser um país-mensagem de coexistência e de paz.”
Além das múltiplas formas de escravatura, como o trabalho ilegal e a toxico-dependência, que afeta sobretudo os jovens e que arruina tantas vidas, famílias e países, “devido ao aparecimento de drogas sintéticas, muitas vezes mortais e amplamente disponibilizadas pelo abominável fenómeno do narcotráfico”, o Papa também denunciou com veemência os traficantes de seres humanos: “gente sem escrúpulos que exploram a necessidade de milhares de pessoas em fuga de guerras, carestias, perseguições ou dos efeitos das alterações climáticas e que procuram um lugar seguro para viver.”
Francisco pediu um maior empenho da Comunidade internacional “para eliminar este miserável comércio” e para cuidar das vítimas deste tráfico, “que são os próprios migrantes, forçados a percorrer a pé milhares de quilómetros na América Central e no deserto do Saara, ou a atravessar o Mar Mediterrâneo ou o Canal da Mancha em embarcações improvisadas e sobre-lotadas, para depois serem rejeitados ou se encontrarem clandestinos numa terra estrangeira”.
Perante os diplomatas dos 184 países acreditados nas Santa Sé, Francisco insistiu no perdão das dívidas internacionais e na comutação das penas dos prisioneiros. “A este respeito, reitero o meu apelo para que a pena de morte seja eliminada em todas as nações, uma vez que não encontra atualmente justificação entre os instrumentos adequados para reparar a justiça”, concluiu.