25 out, 2024 - 18:53 • Ana Catarina André
A nova encíclica do Papa Francisco, Dilexit nos, divulgada na quinta-feira, dia 24, e centrada na importância do coração, frisa que “a vida social precisa de vida espiritual”, considera o bispo auxiliar de Lisboa, D. Alexandre Palma.
Em entrevista à Renascença, o também presidente da Fundação JMJ afirma, ainda, que “também as estruturas eclesiais precisam de coração”. “Não basta a boa vontade, a teologia, a rotina”, considera o prelado, também professor na Universidade Católica.
Depois da Laudato Si, sobre a questão ambiental, e da Fratelli tutti, sobre a amizade social, esta encíclica centra-se mais no indivíduo, na pessoa, na sua vida interior. É uma novidade no pontificado do Papa Francisco?
De facto, esta traz aqui uma dimensão importante. Não diria tanto uma acentuação individual, mas acentuaria a dimensão espiritual e interior, que pode ser individual e comunitária. O Papa até se refere explicitamente a isso no ponto 217, onde diz que, depois de encíclicas com um forte foco social, digamos de doutrina social da Igreja, esta encíclica trabalha os fundamentos dessa própria doutrina social, sem criar aqui nenhuma dicotomia entre sociedade e indivíduo, entre interior e exterior.
O que se trata aqui é de perceber que essa chamada à ação para uma ecologia integral, para uma fraternidade universal é, ao mesmo tempo, causa e consequência de um trabalho interior espiritual de adesão a Jesus e de aproximação a Jesus. A vida social precisa de vida espiritual e, de alguma maneira, esta encíclica no diálogo com as outras encíclicas do Papa Francisco, nomeadamente a Laudato Si e a Fratelli Tutti, sublinha este aspeto. Não há ecologia integral sem uma dimensão espiritual e, no caso cristão, sem uma viva identificação com Cristo. Não há fraternidade universal sem espiritualidade e sem este encontro espiritual com Cristo.
Nos pontos finais da encíclica, o Papa deixa dois alertas. No primeiro, diz: "Hoje tudo se compra e tudo se paga e parece que o sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro". Depois, no ponto seguinte, afirma que a Igreja precisa do amor de Cristo, para não substituí-lo “por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade". Concorda que esta encíclica, apesar de se centrar na importância do coração continua a acentuar, à semelhança das últimas, o impacto das ações de cada um na sociedade e na Igreja?
Sim, creio que esta encíclica pode ter aqui um tom profético, na medida em que nos recorda uma coisa que sabemos, mas que, com frequência, esquecemos: a vida precisa de coração. A vida social precisa de coração. Não há esta busca, esta construção do bem comum apenas com a razoabilidade dos argumentos, a quantificação dos valores. Não, isso não garante a construção do reino dos céus no meio da cidade dos homens.
Por isso, a sociedade precisa de coração. A solução dos nossos problemas sociais, à escala macro e à escala micro, precisa de coração. Também as estruturas eclesiais precisam de coração, ou seja, não basta a boa vontade, a teologia, a rotina. Tem de haver paixão, coração, com tudo aquilo que o nosso coração simboliza e que, aliás, esta carta encíclica trabalha com bastante profundidade e fundamenta até nas próprias tradições bíblicas e espirituais cristãs.
Encíclica Dilexit nos
“Amou-nos” (Dilexit nos) é a nova encíclica do Pap(...)
É um discurso pouco frequente na sociedade…
É um discurso profético numa sociedade, numa cultura, numa economia que corre o risco de ficar demasiado tomada por uma aritmética, por uma geometria, por um cálculo, por um deve e haver, por um custo-benefício. Tudo isso é bom, importante, mas isso não chega, se não houver coração. E o coração, muitas vezes, ultrapassa estes calculismos. Acrescento um aspeto que, da minha leitura da encíclica, me deixou a pensar.
Qual é?
Num tempo em que tanto se fala de inteligência e de inteligência artificial, esta encíclica, onde estão condensados 20 séculos de tradição teológica e espiritual, vem falar de coração natural e sobrenatural. Não deixa de ser um diálogo culturalmente interessante que, no meio de uma espécie de deslumbramento ou de grande temor com a inteligência artificial, a voz da Igreja, pela boca do Papa, traga para o debate a questão do coração. É um tópico muito provocador, muito estimulante para o nosso tempo.
O Papa constata também que tem havido um forte avanço na secularização que pretende um mundo sem Deus. Há uma parte da Igreja que vive como se não fosse assim, como se esta não fosse uma realidade?
Nas nossas sociedades ocidentais, o fenómeno da secularização é relativamente factual, objetivo. Existe uma forma diferente de se relacionar com a Igreja, com a fé, com a comunidade crente, ao limite com o próprio Deus.
O Papa introduz o tema do coração e a centralidade da figura de Jesus neste período cultural e social em que, de facto, as formas de se estabelecer relação, repito, ao limite com Deus, são diferentes. Mas nessa diferença, essas relações não se estabelecem sem coração, isto é, sem uma dimensão de amor, de união, de compaixão. De alguma maneira, tudo isso está simbolizado na ideia de um coração, mas também no ponto em que o Papa fala na questão da secularização. Fala também de uma velha doutrina na história do Cristianismo chamada jansenismo, que pode regressar sobre outras formas – no fundo, uma espécie de salvação puramente espiritual, onde a dimensão corpórea não estaria presente.
Afirmar a importância espiritual, teológica, social do coração e do coração de Jesus, e no coração de Jesus o coração da humanidade, diz-nos que a salvação que nos vem de Jesus não é apenas uma coisa espiritual. É também uma coisa corpórea, histórica, que tem de ter tradução física, social, nas famílias, na política, na economia, na sociedade, na Igreja, na catequese, etc. Não é apenas uma coisa para a nossa alma, mas é uma coisa para nós todos, e isso aparece condensado, simbolizado nesta pedagogia do coração de Jesus.