24 out, 2024 - 11:29 • Aura Miguel
“Amou-nos” (Dilexit nos) é a nova encíclica do Papa, “sobre o amor humano e divino no Coração de Jesus”. Esta encíclica, a quarta do seu pontificado, é inteiramente dedicada à importância do coração na vida de cada um, na Igreja e no mundo.
O coração humano aparece como o centro do desejo e o lugar onde são forjadas as decisões importantes de uma pessoa, por isso, Francisco considera necessário “recuperar a importância do coração quando nos assalta a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência”.
O Papa refere que o coração é também o lugar da sinceridade, onde não se pode enganar ou dissimular. "Costuma indicar as verdadeiras intenções, o que se pensa, se acredita e se quer realmente, os ‘segredos’ que não se contam a ninguém, em suma, a verdade nua e crua de cada um. O que não é aparência ou mentira, mas autêntico, real, inteiramente pessoal”, escreve. Por isso, “a mera aparência, a dissimulação e o engano danificam e pervertem o coração. Para além das muitas tentativas de mostrar ou exprimir o que não somos, é no coração que se decide tudo: ali não conta o que mostramos exteriormente ou o que ocultamos, ali conta o que somos. E esta é a base de qualquer projeto sólido para a nossa vida, porque nada que valha a pena pode ser construído sem o coração. As aparências e as mentiras só trazem vazio”, conclui.
“Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração”, aconselha o Papa. “É necessário indicar onde cada pessoa, de qualquer classe e condição, faz a própria síntese, onde os seres concretos encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências, convicções, paixões e escolhas”.
Os problemas surgem quando falta o coração e não se lhe dá o devido valor. “Quando não se consideram as especificidades do coração, perdemos as respostas que a inteligência por si só não pode dar, perdemos o encontro com os outros, perdemos a poesia. E perdemos a história e as nossas histórias, porque a verdadeira aventura pessoal é aquela que se constrói a partir do coração. No fim da vida, só isto contará”, avisa o Papa.
Francisco insiste que a identidade de cada um se molda e afirma no coração. “O algoritmo que atua no mundo digital mostra que os nossos pensamentos e as decisões da nossa vontade são muito mais ‘standard’ do que pensávamos. São facilmente previsíveis e manipuláveis. Não é o caso do coração”, escreve. “Em última análise, poder-se-ia dizer que eu sou o meu coração, porque é ele que me distingue, que me molda na minha identidade espiritual e que me põe em comunhão com as outras pessoas”.
Além disso, o coração é também capaz de unificar e harmonizar a própria história pessoal, que parece fragmentada em mil pedaços, mas na qual tudo pode adquirir sentido. “É isso que o Evangelho exprime no olhar de Maria, que olhava com o coração. Ela foi capaz de dialogar com as experiências que conservava, meditando-as no seu coração”, recorda o Papa. “Tudo está unificado no coração, que pode ser a sede do amor com todas as suas componentes espirituais, psíquicas e também físicas, porque cada ser humano é criado sobretudo para o amor; é feito nas suas fibras mais profundas para amar e ser amado”.
Ao considerar o actual contexto de novas e sucessivas guerras que acontecem “com a cumplicidade, a tolerância ou a indiferença de outros países, ou com simples lutas de poder em torno de interesses de parte”, o Papa alerta para os riscos de a sociedade mundial estar a perder o seu coração. “Basta olhar e ouvir – nos diferentes lados do confronto – as idosas que são prisioneiras destes conflitos devastadores. É desolador vê-las chorar os netos assassinados, ou escutá-las desejar a própria morte por terem perdido a casa onde sempre viveram. Descarregar a culpa nos outros não resolve este drama vergonhoso. Ver as avós a chorar sem que isso se torne intolerável é sinal de um mundo sem coração”, afirma.
A alternativa passa pela pacificação. “Só a partir do coração é que as nossas comunidades serão capazes de unir e pacificar os diferentes intelectos e vontades, para que o Espírito nos possa guiar como uma rede de irmãos, porque a pacificação é também uma tarefa do coração”.
E como o modelo é o Coração de Cristo, “n’Ele tornamo-nos capazes de nos relacionarmos uns com os outros de forma saudável e feliz, e de construir neste mundo o Reino de amor e de justiça. O nosso coração unido ao de Cristo é capaz deste milagre social”, garante Francisco. E, neste contexto, o Papa coloca-se diante do Coração de Cristo e pede que o Senhor “tenha compaixão desta terra ferida, que Ele quis habitar como um de nós e derrame os tesouros da sua luz e do seu amor, para que o nosso mundo, que sobrevive entre guerras, desequilíbrios socioeconómicos, consumismo e o uso anti-humano da tecnologia, recupere o que é mais importante e necessário: o coração”.
Grande parte da Encíclica é dedicada à devoção ao Sagrado Coração de Jesus no seio da Igreja. O texto inclui excertos de encíclicas e documentos de outros pontífices, teólogos, padres da Igreja e vários santos que viveram ainda antes das aparições de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque (que ocorreram em Paray-le-Monial, a partir de 1673).
Desde Santa Teresa do Menino Jesus, a Faustina Kovalska, Charles de Foucauld, Paulo VI e João Paulo II, esta encíclica incentiva a dimensão pessoal, comunitária, social e missionária ao Coração de Jesus.
“Hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas”, alerta o Papa. “O amor de Cristo está fora desta engrenagem perversa e só Ele pode libertar-nos desta febre onde já não há lugar para o amor gratuito”.
A concluir, o Papa afirma ainda que a Igreja também precisa desta devoção, “para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por ocupar o lugar daquele amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração e alimenta as comunidades”.
Dilexit nos’ é a quarta encíclica do Papa Francisco, surgindo depois das encíclicas ‘Lumen fidei’ (2013), que recolhe reflexões sobre a fé iniciadas por Bento XVI; ‘Laudato si’ (2015), documento que propõe uma ecologia integral, abordando questões sociais e ligadas ao meio ambiente; e ‘Fratelli tutti’ (2020), que recolher as reflexões de Francisco sobre a fraternidade e a amizade social.