10 out, 2024 - 06:30 • Ângela Roque
"É urgente tomar medidas, porque isto vai piorar”, diz frei Filipe Rodrigues. Conhecedor da realidade das pessoas em situação de sem-abrigo em Lisboa, Filipe Rodrigues lamenta que os responsáveis políticos não tenham conseguido até hoje erradicar a pobreza da cidade e do país.
Em entrevista à Renascença, a propósito dos 10 anos da Associação João 13 - que começam a ser assinalados neste Dia Mundial dos Sem Abrigo -, frei Filipe diz que a pandemia e as sucessivas crises não justificam o adiamento consecutivo de medidas, sendo preciso evitar a todo o custo que mais pessoas acabem a viver na rua.
“Obviamente que a crise não pode justificar tudo. No nosso país somos muito bombeiros, só apagamos fogos, não há prevenção”, lamenta, defendendo que a intervenção deveria acontecer assim que se deteta uma situação limite.
“A uma pessoa que aparecesse e fosse a primeira noite que estivesse na rua, não devia ser permitido que ela lá ficasse, porque ao fim de uma semana já está mais degradada e ao fim do mês já está com vícios. Devia haver uma sinalização na hora”.
Para frei Filipe Rodrigues, sem o compromisso e empenho dos políticos não se conseguirá avançar. “Que haja sensibilidade para com esta realidade das pessoas em situação de sem-abrigo, e que, por favor, não andemos nos remendos. Os remendos desgastam-se, voltam a romper e não é solução”, adverte.
Frei Filipe pede que se deixe de “fazer de conta” e que se tomem medidas que não sejam meros “paliativos” e que tenham horizontes realistas.
“Não podemos pedir ao Estado que faça tudo numa legislatura. Mas que, pelo menos, se comprometam com uma ou duas medidas, durante dois anos. Isso é possível”, diz.
"Prioridades? Eu aconselharia regularizar as situações, há muita gente sem papéis, há um caos com os estrangeiros", sugere como primeiro passo a dar.
"Tirá-los da rua” seria o passo seguinte, unindo esforços e rentabilizando o que já existe, ao nível do Estado, das autarquias e até da Igreja, porque “há espaços devolutos, onde, com boa vontade, se podia construir centros temporários de acolhimento".
"Isto é possível”, enfatiza frei Filipe, reforçando que é também "essencial" que os responsáveis políticos ouçam quem está no terreno. “Mas têm de ouvir para agir", alerta, porque "os políticos gostam muito de ir visitar as instituições, sentam-se à mesa com as pessoas em situação de sem-abrigo, os assistentes tiram notas, mas, depois, não fazem nada".
"Ouçam para agir, porque senão não vale a pena. É mais uma desilusão para as pessoas sem-abrigo”.
Para frei Filipe, a recente operação da Câmara de Lisboa junto à igreja dos Anjos, na Almirante Reis, em Lisboa, não passou de um “remendo”, que “remediou, mas não resolveu”.
O responsável duvida da eficácia da medida, alertando que até pode ter contribuído para agravar o sentimento de injustiça entre a população sem-abrigo.
“Estas pessoas não vão ficar em hostéis, Airbnb, um mês, quatro meses, cinco meses, por tempo indeterminado. Isto não só não é resposta, como também é uma atitude um bocadinho injusta para com todas as outras pessoas que não vivem nos Anjos, também vivem na rua e que não têm acesso a isto”.
Filipe Rodrigues garante que entre os sem-abrigo “sente-se isso", há o sentimento de que "se apoia mais uns do que outros”, facto que potencia reações negativas. "O racismo também vem por aqui, é necessária sensibilidade e bom senso", adverte.
Lisboa
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“Às vezes não medimos isto: grande parte das pessoas que estavam ali não eram portuguesas e começa a haver esta ideia de que 'aos estrangeiros ajudam, a nós não nos ajudam. Eu que sou português e estou a viver na rua, e eles que são do estrangeiro já têm um quarto. Isto é injusto'”.
No dia em que o Orçamento de Estado é entregue no parlamento, frei Filipe lembra que o combate à pobreza e a ajuda aos sem-abrigo têm de ser prioridades políticas. “Eu não sei se o no OE se vai discutir a situação destas pessoas. Já uma vez disse que era bom haver um Ministério das Pessoas sem-abrigo, mas, agora, já não chego tanto: uma direção-geral bastaria, um secretariado que fosse, em que governo, Igreja, autarquias, se pudessem sentar e avançar com um plano”.
“Não é uma fatalidade haver pobres”, diz, mas tem de haver um envolvimento de todas as entidades, porque “isto vai piorar"
"Ninguém nos garante que daqui a um mês, nos Anjos, não estejam novas tendas. A nossa experiência do passado, nos bairros de lata, é de que se as casas não fossem demolidas nos dias a seguir, quando lá fossem,,já estavam ocupadas. A probabilidade de isso acontecer ali ou noutro bairro qualquer é grande”, assegura.
No NAL de São Vicente, junto à Feira da Ladra, a Associação João 13 apoia diariamente pessoas em situação de sem-abrigo da zona de Santa Apolónia, facultando uma refeição quente e a possibilidade de tomarem banho e trocarem de roupa. Há lavandaria e um vestiário com os bens dos utentes devidamente identificados.
O projeto, que nasceu há quase uma década, mantém-se com 270 voluntários, distribuídos por equipas nos vários dias da semana. Já este ano, foi criada uma sala de espera, com televisão, internet e “40 boxes” para que as pessoas possam carregar telemóveis. “Não é um luxo”, aponta, lembrando que os telemóveis são hoje precisos para tudo. “Como é que os contactam, no caso de oferta de emprego?”
Em 10 anos quantas pessoas já apoiaram? “Não exagero se disser umas seis ou sete mil pessoas!”, avança. Mas o perfil dos que ali procuram ajuda já mudou muito. Hoje, são cada vez mais novos e há cada vez mais estrangeiros, confirmando assim que a imigração fez aumentar a pobreza nas ruas.
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“A maioria está entre os 30 e os 39 anos. Quando começámos, eram pessoas bastante mais velhas, até 65 anos. Depois, dos 40 aos 50, pessoas que muitas vezes tinham perdido o emprego e já não conseguiram refazer a sua vida. E só depois vinham os dos 30 aos 39 anos, que são agora a maior parte dos que recebemos ali, mas não estou a dizer que seja assim em toda a cidade”.
Dos que recorrem à João 13, no NAL + S. Vicente, os portugueses ainda são a maioria, mas também isso está a mudar. “Agora o segundo maior país é a Índia, o terceiro é o Paquistão, o quarto o Nepal e o quinto o Brasil”.
Frei Filipe não tem dúvidas de que a imigração está a fazer crescer o número de sem-abrigo na cidade de Lisboa. "Os migrantes quando vêm para Portugal com promessas de emprego e de uma vida melhor, chegam cá e não têm nada. E para onde é que vão? Para a rua”.
Outra alteração no perfil dos utentes é que, no passado, a associação ajudava muitas famílias carenciadas e quem vivia em quartos e pensões, enquanto hoje são quase todos sem-abrigo. “Também é um dado curioso que tem mudado. Até há uns três anos, a maioria tinha um quarto, muitas vezes subsidiado pela Santa Casa, mas com os preços a aumentar foram parar à rua. Para ter uma ideia, 80% das pessoas que nós recebemos ali hoje são pessoas que vivem na rua. Isto não acontecia antes”.
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Para este 10 de outubro, Dia Mundial dos Sem-Abrigo, e como arranque das comemorações do 10º aniversário da João 13, está a ser preparado um jantar especial para os utentes. “Vamos ter bacalhau e batatas, porque eles gostam muito e só comem no Natal e mais umas três ou quatro vezes por ano. Haverá também pequeno almoço reforçado para o dia seguinte”, adianta.
Diariamente ninguém que apareça no NAL + S. Vicente fica sem se alimentar. “Mesmo que não jante, leva um 'take away' para comer depois. Seria desumano chegar ali, estar à espera de uma refeição e não conseguir”.
Frei Filipe fala com entusiasmo do que vão conseguindo assegurar, além da higiene e alimentação, como o protocolo que fizeram e que tem permitido arranjar os dentes a muitos sem-abrigo, ou as aulas de português que começaram a dar a alguns imigrantes. Histórias felizes? “Há duas semanas empregámos um dos utentes, guineense, que suspendeu os estudos porque não tinha dinheiro. Faltam-lhe duas cadeiras para acabar direito e está também a fazer um curso de árabe, queria um emprego para organizar a sua vida”.
Para o futuro, frei Filipe tem um sonho: "um dos meus desejos para as comemorações dos 10 anos é abrirmos outra resposta".
Frei Filipe aplaude a intenção do Patriarca de Lisboa criar uma paróquia para os sem-abrigo. Mas espera que seja uma paróquia física, que em colaboração com outras entidades possa agregar no mesmo espaço outros serviços de apoio, porque a população não precisa só de ser ouvida. O ideal era ser num bairro desfavorecido da capital.
“As pessoas em situação de sem-abrigo, saberem que têm ali um sítio onde podem ir, falar, ter alguns serviços… é importante. Eu não sei o que o senhor Patriarca tem em mente, mas tivemos uma primeira conversa em que falou muito da questão de ouvir a pessoa em situação de sem-abrigo. Mas, com estas pessoas o ouvir não chega. Isto não pode ser um gabinete de escuta”, alerta.
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“Se uma pessoa me diz ‘eu não tenho emprego’, eu não posso dizer ‘olha, obrigado por teres partilhado comigo’. Eu tenho de ter uma resposta para lhe dar. Portanto, acho que é muito importante que a Igreja de Lisboa se envolva nisto. Mas, se me perguntassem, seria uma paróquia física, sim, num bairro mais pobre e onde houvesse ali instituições e pessoas em situação de carência e de sem-abrigo”, para que se pudesse assegurar um trabalho de acompanhamento e encaminhamento das situações, a par da dimensão espiritual. “Isso seria a parte pastoral da paróquia”.
A avançar, o projeto de uma paróquia para os sem-abrigo será inédito em Portugal, mas já existe noutros países, em cidades como Madrid. E “pode dar prioridade a estas pessoas, mas não tem de ser só para elas”, ser inclusiva, até porque “há muito trabalho a fazer a este nível, com os católicos, para mudar mentalidades”, para lembrar que “o estrangeiro é meu irmão”.