Siga-nos no Whatsapp
A+ / A-

Entrevista Renascença/Ecclesia

Presidente da Cáritas de Pemba: “Só Deus está lá para proteger"

06 out, 2024 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) Paulo Rocha (Agência Ecclesia)

No momento em que se assinalam os sete anos do primeiro ataque terrorista em Cabo Delgado, é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia Manuel Nota, presidente da Cáritas Diocesana de Pemba.

A+ / A-

O presidente da Cáritas de Pemba, Manuel Nota, lamenta a contínua falta de segurança que se verifica em Cabo Delgado, onde há sete anos se vive sob a ameaça terrorista.

Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, o responsável moçambicano alerta também para as dificuldades económicas que as organizações não governamentais estão a passar, na região. "Deparamo-nos com falta de fundos para atender as pessoas necessitadas", diz.

Manuel Nota dá conta das dificuldades do organismo da Igreja Católica em apoiar as populações nos locais de reassentamento, por falta de financiamento, e garante que desde o início do ano se agravaram as dificuldades económicas da Instituição.

"Temos vindo a bater a portas, mas, infelizmente, não temos tido respostas positivas”, diz, acrescentando que a situação “tende a agravar-se, tende a ir de mal a pior”.

“Não temos muitos amigos que estejam ligados a grupos financeiros e temos vindo a passar grandes dificuldades”, desabafa Nota.

O presidente da Cáritas de Pemba apela ao apoio internacional para continuar "a ajudar aqueles que sofrem".

“Nós precisamos de apoio, porque, por vezes, só vemos gente sofrendo e não podemos fazer nada, porque não temos como ajudar”, lamenta.

O primeiro relato de ataques terroristas na região aconteceu a 5 de outubro de 2017. Sete anos depois, Manuel Nota recusa-se a afirmar que “Cabo Delgado esteja esquecido”, mas adianta que “a falta de fundos dá a ideia de que parece estar esquecido”.

Em véspera das eleições gerais no país, o presidente da Cáritas de Pemba antevê uma afluência “em massa às urnas”, porque é preciso que “as coisas mudem um pouco”.

Manuel Nota não avança prognósticos dos resultados, mas aponta que há "cansaço" perante "algumas maneiras de fazer as coisas”.

O responsável sublinha ainda a proximidade do Papa Francisco para com a população que sofre e sustenta que “as palavras do Santo Padre criaram mudança na estratégia dos insurgentes", que “já não têm sido cruéis como eram no princípio”.

"Deparamo-nos com falta de fundos"

Como caracteriza a situação na região de Cabo Delgado, atualmente?

Atualmente, as coisas parecem estar calmas, mas ainda continuam algumas incursões que, infelizmente, não têm sido relatadas como eram no passado. Aparentemente, a situação está controlada.

Não há sentimento de insegurança entre a população?

Existe alguma insegurança... Depois de tantos anos, as pessoas que viviam em centros de reassentamento decidiram regressar para as suas terras de origem. Algumas tiveram sucesso, chegaram e reiniciaram a vida sem problemas, mas outras famílias, ao chegar na zona, voltaram a ser atacadas e tiveram que sair, novamente, dos seus locais habituais em busca de outros considerados seguros, mais próximos das suas zonas de origem.

Um relatório recente da das Nações Unidas revela que os terroristas apoiados pelo Grupo do Estado Islâmico estão mais ativos e a conseguir ataques mais sofisticados, mais cirúrgicos na província de Cabo Delgado, incluindo em algumas áreas próximas do local onde está instalado o maior projeto de gás em África. Notam no terreno esta instabilidade?

Pessoalmente, não consigo notar, porque nas zonas onde há exploração de gás temos lá a proteção da força ruandesa, que tem vindo a garantir a segurança da zona. Eles trabalham em parceria com a nossa força de segurança. Nos sítios onde há exploração de gás, não se fala nada de ataques. Onde se fala de ataques é nas zonas circunvizinhas ou mais próximas.

E o que é que isso pode indicar?

Aquela que é a minha perceção é a de que, querendoexplorar, sem problema, há uma segurança forte, mas nas zonas que não são de maior interesse dos exploradores de gás, a população fica à deriva. Só Deus está lá para proteger. E uma vez ou outra faz-se sentir a presença da força.

"As outras Caritas também estão a passar por momentos não muito bons, financeiramente"

Existe uma linha de pensamento que associa os ataques, essencialmente, aos interesses económicos da região. Nesta altura, há infraestruturas em risco?

Infraestruturas em risco, como tal, acho que não, porque o grande interesse, na minha maneira de perceber, é procurar inviabilizar essa questão de exploração de gás. Por isso, andam ali a atacar um sítio, atacar o outro para desencorajar aqueles que têm intenção de poder dar continuidade ao esse processo de exploração de gás. Se existem infraestruturas em risco, não se consegue perceber.

Como é que está a convivência entre as forças militares e as populações?

A última vez que eu visitei Mocímboa da Praia vi que existe uma boa relação entre a força de proteção e a população. Quando chegámos, fomos aconselhados a apresentarmo-nos à polícia, para não parecermos pessoas estranhas naquele local. O que conseguimos ver é que as pessoas se conhecem entre elas. Os militares conhecem a população e a população conhece também os militares, porque eles estão todo o tempo juntos. Acho que é uma boa relação. Não conseguimos ver desentendimentos, havia muita aproximação.

Os militares de Angola e da Namíbia, que integravam a força militar dos países da África Austral em Cabo Delgado, saíram do terreno em maio. E, em final de março, a missão militar da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral também já tinha saído do território. Aliás, o bispo de Pemba mostrou-se preocupado com esta situação. Isso influenciou as formas de ação terrorista no terreno?

Não percebo nada de ação militar, mas aquilo que eu vejo é que, de alguma forma, criou força para os terroristas porque, ao saber que a zona estava desprotegida, tinham mais força de poder ir e desfazer. Enquanto estiveram lá os militares da SADC [Southern African Development Community], tinham de pensar duas vezes, porque é uma força com uma tática militar um pouco mais forte, mais sofisticada. Agora que saíram, conseguimos ver que houve aquele ataque em Macomia, em maio, porque já havia informações de que os da SADC estavam para sair e os insurgentes acharam que poderiam entrar. Agora que se voltou a ter a força ruandesa, pouco se fala de ataques na zona de Macomia

"Já chegamos a ter perto de um milhão de pessoas deslocadas"

É possível fazer um cálculo do número de pessoas deslocadas?

Já chegamos a ter perto de um milhão de pessoas deslocadas. Agora, o último relatório que vi falava de perto de 583 mil pessoas já regressadas ou retornadas. Mas continuamos com deslocados porque houve pessoas que regressaram, chegaram e encontraram seus sítios inseguros, tendo voltado a sair para outros sítios. Ainda estão a viver na condição de deslocados, não nos mesmos sítios onde estiveram durante muito tempo, mas noutros. O movimento de pessoas continua a acontecer.

E as crianças continuam a ser as principais vítimas...

Claro, a criança é quem sofre mais com esses deslocamentos. Os pais facilmente se fixam, conseguem adaptar-se, mas as crianças são aquelas que têm que estar sempre a procurar novas adaptações e, como consequência, passam por muitas necessidades.

E raptos de crianças? Falou-se disso durante muito tempo... O problema abrandou?

Já não se fala tanto de rapto de crianças. Há semanas, ouvi dizer que algumas mulheres tinham sido raptadas, mas logo depois foram libertadas. Já não há muito rapto de crianças.

"A criança é quem sofre mais"

A Igreja moçambicana, através da Conferência Episcopal, denunciou, em diversos momentos, violações dos direitos humanos e apelou à paz na região. Em algumas igrejas locais, têm-se realizando vigílias de oração pela paz. Sentem o apoio solidário dos bispos do país?

Claro, a Igreja está sempre presente. Só que a população de Cabo Delgado - e não sei se tem a ver com questões culturais - pouco vê isso, porque, para eles, a ajuda seria algo material. Então, a questão moral, a questão de consciencialização, para eles, é uma ajuda, sim, mas não consideram uma ajuda direta. Para eles, para sentirem que há envolvimento da Igreja, gostariam de estar a receber produtos, produtos materiais.

Mas esse envolvimento também é fundamental por parte da Conferência Episcopal como instância de diálogo para o fim do conflito, não é?

Claro, é muito importante. Mas a Conferência Episcopal tem-se feito sentir a partir de nós, Cáritas. Mas o que nos trava ultimamente é a questão de falta de projetos que financiem o que em sido as nossas ações. Então, a nossa presença em locais de reassentamento tem sido muito reduzida. Deparamo-nos com falta de fundos para podermos atender aquelas pessoas necessitadas. Mas, sempre que for possível, fazemos o esforço e vamos lá dar uma mão. E dizemos que estamos a atuar em nome da Igreja Católica.

"Nas zonas que não são de maior interesse dos exploradores de gás, a população fica à deriva. Só Deus está lá para proteger"

Em março, o Manuel Nota alertava, precisamente, para esses problemas financeiros da Caritas de Pemba. Pelo que nos diz, situação não está ultrapassada...

Não, tende a agravar-se, tende a ir de mal a pior, não é? Porque os projetos que estávamos a implementar estão a terminar e não há esperança de podermos contar com novos financiamentos. Temos vindo a bater a portas em muitos sítios, mas, infelizmente, não temos tido respostas positivas. E o motivo é mesmo: está-se em crise financeira e o pouco que existe, se calhar, agora dá-se por amizades e por aí fora. Nós, porque não temos muitos amigos que estejam ligados a grupos de financiadores, temos vindo a passar grandes necessidades mesmo.

O Manuel Nota referia também a importância da ajuda solidária de Portugal. Admite o recurso, nomeadamente, a outras Caritas, para tentar, de alguma forma, atenuar o problema?

As outras Caritas também estão a passar por momentos não muito bons, financeiramente. Em Moçambique e também além-fronteiras. Aquelas que têm sido Caritas irmãs e que, por muito tempo, trabalharam connosco, também têm vindo a dizer que estão impossibilitadas de nos dar uma mão. Ganhamos agora um projeto que é fruto do apelo emergencial que foi lançado pela Caritas Moçambicana, em que a Caritas Portuguesa e o Instituto Camões decidiram subscrever um projeto para apoiar 350 famílias no distrito de Mecufi, com alimentos e alguns produtos de higiene. Agora, estamos só à espera de passar a questão do período de eleições que Moçambique está a vivenciar, para entrarmos no terreno e podermos fazer a assistência.

Quer aproveitar este momento para, aos microfones da Renascença e da Agência Ecclesia, lançar este apelo à ajuda?

Claro, nós precisamos de apoio, porque, por vezes, vemos gente sofrendo, mas não podemos fazer nada, porque não temos como ajudar. Se houver Caritas irmãs ou outros parceiros interessados em ajudar aqueles que sofrem, poderiam trabalhar connosco, que nós fazemos chegar aquilo que são os recursos. Somos uma organização religiosa, como sabe, e estamos comprometidos com o bem-estar do próximo.

"Estamos comprometidos com o bem-estar do próximo"

Sete anos depois da eclosão dos conflitos, sente que Pemba e Cabo Delgado estão mais esquecidos?

Eu acho que o ambiente de emergência já não se faz sentir tanto. Aqueles que sempre doaram entendem a emergência como algo que se desenvolve em pouco tempo. O que agora se está a falar é que temos de implementar projetos de emergência, mas com uma componente de desenvolvimento, porque se a pessoa já ficou sete anos num ponto, acha-se que já é tempo suficiente para procurar meios de poder avançar com a sua vida e não pensar em regressar ao sítio que abandonou. Os projetos que temos vindo a subscrever têm mesmo a ver com a questão de emergência "versus" desenvolvimento. Então temos colocado a componente de desenvolvimento, sobretudo quando se fala de meios de vida, para que as pessoas comecem a viver por elas mesmas e não só a depender de apoios externos. Não digo que Cabo Delegado esteja esquecido, não está. Mas a falta de fundos dá essa ideia: parece estar esquecido.

Continua a haver razões de queixa da atuação da comunidade internacional?

Bem, algo de estranho que tem acontecido, ultimamente: temos algumas agências, nomeadamente agências internacionais, que não tinham mandato para executar ou implementar projetos e que, agora, fazem elas mesmas o papel de implementadores, em vez de confiar a tarefa a nós, que somos organizações não-governamentais locais. Isso deixa-nos muito vulneráveis em termos de financiamento e as poucas organizações que existem passam a vida a murmurar que estão sendo excluídas na questão do financiamento. Os financiamentos não estão a ser transparentes.

E o Programa Alimentar Mundial?

Também está a passar por momentos financeiros não muito bons... Como falamos a última vez, o Programa Mundial de Alimentação tinha anunciado que estava com problemas sérios de dinheiro e que ia suspender algumas ações, mas, depois, conseguiram algum fundo e têm vindo a trabalhar de forma intermitente. São mesmo as questões financeiras que estão a fazer com que parece que as organizações não têm vontade de atender àqueles que são os necessitados.

Isso poderá ter a ver com outros conflitos em outras áreas do globo?

Pode ser, sim, porque a última vez que contactamos os outros nossos financiadores lá da Europa disseram-nos que o foco deles, agora, é olhar para as outras áreas que também estão a sofrer por conflitos armados.

"Estamos cansados, estamos, com algumas maneiras de fazer as coisas"

Estamos a falar no primeiro dia da semana em que os eleitores moçambicanos escolhem o seu novo governo. As eleições são dia 9. Que expectativas tem?

Bem, vamos esperar para ver, mas penso que a população de Moçambique irá afluir em massa às urnas, porque precisamos que as coisas mudem um pouco, não é? Como o voto é secreto, não gosto muito de avançar assim com tendências, mas temos visto enchentes naquilo que são as campanhas eleitorais, porque a nossa televisão tem mostrado. Até agora, está equilibrado, vamos esperar para ver. Mas que estamos cansados, estamos, com algumas maneiras de fazer as coisas.

Durante a campanha eleitoral, sentiu preocupação dos partidos em relação a Cabo Delgado ou o tema foi ignorado?

Bem, o conflito de Cabo Delgado já parece algo com que se convive, não é? Parece que já nos habituamos a viver com ele. Um e o outro preocupa-se, fala, pronuncia-se um pouco sobre a questão, não é? Mas para os outros é como se nada estivesse a acontecer, é algo com que já se vive há muito e, então, não há tanta preocupação.

O conflito passa um pouco à margem do resto do território?

Bem, o conflito faz-se sentir muito em alguns distritos, não em toda a província. Talvez seja um motivo para não se criar muita preocupação, não é?

"Penso que a população de Moçambique irá afluir em massa às urnas, porque precisamos que as coisas mudem um pouco"

Em relação ao papel do Vaticano e em particular do Papa neste conflito, Francisco, em fevereiro, disse no Ângelus que a violência contra populações indefesas, a destruição de infraestruturas e a insegurança estão novamente desenfreadas na província de Cabo Delgado. Como acolhem estas palavras e que fator de transformação poderão elas ter?

Eu acho que as palavras do Santo Padre, de alguma forma, criaram a mudança de estratégia dos insurgentes. Tenho acompanhado aqui a situação e noto que agora eles já não têm sido cruéis como eram no princípio, não é? Em algum momento eles chegam a aldeias e dizem à população para não fugir, que eles não estão preocupados em matar a população. Isso mostra que as palavras do Papa Francisco foram ouvidas, não é? Porque foram atacando pessoas indefesas e foram destruindo infraestruturas de uso público e, no final das contas, é a população que sofre. Sofre porque o seu hospital foi destruído, porque a sua escola foi destruída. Eles mudaram de estratégia de atuação.

Portanto sentem nas palavras do Papa conforto e proximidade?

Claro, claro, nós sentimos isso.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+